Constitucionalidade da “Lei do Ficha Limpa”

Finalmente a polêmica sobre a compatibilidade da “Lei do Ficha Limpa” (Lei Complementar n° 135/2010)  com a Constituição foi examinada em definitivo pelo Supremo Tribunal Federal, que declarou a sua constitucionalidade (ADCs n°s 29 e 30 e ADI 4578).

As controvérsias jurídicas e a contextualização política do tema foram devidamente abordadas nesta coluna. O desfecho merece recapitulação do que aqui foi escrito, desde o ano de 2008, com os necessários acréscimos diante do que afinal decidiu o STF.

1. Os antecedentes da “Lei do Ficha Limpa” – debate judicial sobre vida pregressa e registro de candidatura

Pode-se apontar, como antecedente direto da “Lei do Ficha Limpa”, o intenso debate judicial que foi travado no âmbito da Justiça Eleitoral e que chegou ao Supremo Tribunal Federal, envolvendo basicamente o seguinte questionamento: Candidato a cargo eletivo que tivesse vida pregressa contrária à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato, ainda que não houvesse contra si decisão judicial condenatória definitiva, podia ter o requerimento de registro de candidatura negado pela Justiça Eleitoral?

Em junho de 2008, o Tribunal Superior Eleitoral enfrentava mais uma vez o tema. Mais uma vez porque, já durante as eleições de 2006, a matéria fora submetida a intenso debate naquela Corte, por ocasião do julgamento do Recuso interposto por Eurico Miranda contra a decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro que negara o registro de sua candidatura naquelas eleições, levando em conta a sua vida pregressa considerada manchada, mesmo sem trânsito em julgado de qualquer condenação.

A Constituição Federal prevê, em seu Art. 14, § 9º:

“§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994).” (grifou-se).

Para atender a esses objetivos indicados na norma constitucional acima transcrita, foi editada a Lei Complementar nº 64/90, que prevê, além de outros, o seguinte caso de inelegibilidade:

“Art. 1º São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
(…)
e) os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena;”
(grifou-se).

Como se observa, esse dispositivo legal exigia o trânsito em julgado da sentença criminal condenatória como requisito para caracterização de inelegibilidade. Somado à garantia constitucional fundamental que consiste na “presunção da não culpabilidade” (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” – Art. 5º, inciso LVII), tornava-se forte obstáculo à tentativa de interpretação judicial que autorizesse a Justiça Eleitoral a negar o registro de candidatos a cargos eletivos que tenham vida pregressa contrária à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato, ainda que não haja decisão judicial condenatória definitiva.

Todavia, tanto em 2006 como em 2008, três Ministros do TSE, embora vencidos na tese, adotaram entendimento no sentido da possibilidade da negativa de registro da candidatura, mediante o preenchimento de certos pressupostos (em 2006, os Ministros Carlos Ayres Britto, Cesar Asfor Rocha e José Delgado, e na semana passada os Ministro Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Felix Fischer).

A tese vencida, que teve no Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro um dos mais incisivos aplicadores, e que contou com entusiasmado apoio do então Presidente do TSE, Ministro Carlos Ayres Britto, apresentava, resumidamente, os fundamentos que seguem apontados.

A tese exposta no voto do Ministro Carlos Ayres Britto distingue direitos individuais e direitos políticos, a partir de seus fundamentos principiológicos e de suas especificidades. Os primeiros são direitos de índole tipicamente liberal, oponíveis ao Estado, que protegem o indivíduo do abuso do poder político, da opressão estatal. Já os direitos políticos são direitos de participação na formulação das regras gerais e das decisões coletivas de interesse de todos, que, na democracia representativa, dividem-se em direitos políticos ativos (direito de votar e de eleger representantes) e direitos políticos passivos (direito de ser votado e de ser eleito para representar democraticamente o interesse de parcela dos cidadãos). Portanto, enquanto os direitos individuais protegem o indivíduo considerado em si mesmo, os direitos políticos protegem a soberania popular e a democracia. Em suas próprias palavras:

“Não são as pessoas que se servem imediatamente deles, princípios da soberania popular e da democracia representativa, mas eles é que são imediatamente servidos pelas pessoas. Quero dizer: os titulares dos direitos políticos não exercem tais direitos para favorecer imediatamente a si mesmos, diferentemente, pois, do que sucede com os titulares de direitos e garantias individuais (…)
(…)
O eleitor não exerce direito para primeiramente se beneficiar. Seu primeiro dever, no instante mesmo em que exerce o direito de votar, é para com a afirmação da soberania popular (valor coletivo) e a autenticidade do regime representativo (também valor de índole coletiva). O mesmo acontecendo com o candidato a cargo político-eletivo, que só está juridicamente autorizado a preferência do eleitorado para representar uma coletividade territorial por inteiro”.

No contexto dos direitos individuais é que se encontra o princípio da “presunção da inocência” ou “presunção da não-culpabilidade” (como prefere denominar o Ministro Carlos Ayres Britto), segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (Art. 5º, inciso LVII). Tal garantia, porém, não se situa no rol dos direitos políticos. Daí ter sustentado o Ministro Carlos Britto que “esse trânsito em julgado somente foi exigido na lógica pressuposição de estar o candidato a responder por um ou outro processo penal. Por uma ou outra situação de eventual percalço jurisdicional-penal, de que ninguém em sociedade está livre. Jamais pretendeu a Lei das Leis imunizar ou blindar candidatos sob contínua e numerosa persecutio criminis (…)”.

Em outras palavras, o que a tese vencida defendeu foi que quando alguém é condenado criminalmente, mas ainda pende julgamento de recurso que pode reverter o resultado da condenação, tem a garantia de não já ser considerado culpado, porque o prejuízo que pode advir a esse alguém diante de uma futura absolvição no julgamento do recurso pode ser irreparável ou de difícil reparação, como por exemplo se já fosse obrigado a cumprir pena (que poderia ser de prisão) e depois ser julgado que a pena era incabível e injusta. Mas quando alguém for impedido de obter o registro de sua candidatura por ter sua vida pregressa considerada ofensiva à probidade administrativa e à moralidade para a representação democrática (ainda que sem condenação definitiva) e vier a obter futura absolvição em julgamento de recurso, o benefício da dúvida foi coletivo, porque diante da razoabilidade melhor terá sido evitar a candidatura daquele que poderia ser realmente culpado e ter uma vida pregressa que não recomendasse o exercício de mandatos eletivos, em prejuízo da autenticidade maior do sistema democrático-representativo. E o prejuízo individual terá sido apenas a frustração de um direito potencial de representar segmentos da sociedade, mas sem maiores seqüelas individuais, como seria o cumprimento imediato de pena injusta.

Essa tese não abriria flanco para perseguições políticas indevidas, proposituras infundadas de ações judiciais, com o propósito apenas de impedir determinadas candidaturas? Os defensores dessa tese argumentam que não, pois a ordem jurídica brasileira é rica em mecanismos que coíbem esse tipo de abuso, além de prever rigorosas garantias individuais processuais, dentre as quais se destaca também a independência funcional dos magistrados e dos membros do Ministério Público. Além disso, deve ser registrado que o Ministro Joaquim Barbosa, ao acompanhar o voto vencido do Ministro Carlos Britto, impôs um condicionamento bastante razoável: exigir que eventual condenação criminal só sirva como critério impeditivo de registro de candidatura quando já esgotadas, pelo menos, as vias judiciais ordinárias (traduzindo em terminologia mais simples, quando a condenação pelo menos já tiver ocorrido em segunda instância).

Ainda que muito bem fundamentada a tese vencida, nem em 2006 nem em 2008 prevaleceu no TSE. A maioria, então vencedora, adotou a tese jurídica segunda a qual a vida pregressa somente poderia ser levada em conta para negativa de registro de candidatura em caso de condenação devidamente transitada em julgado, que era o que então estabelecia expressamente a Lei Complementar n° 64/90. Como a Constituição, no Art. 14, § 9°, ao estabelecer que a vida pregressa deveria ser levada em conta na fixação de outras hipóteses de inelegibilidades por lei complementar, e a lei complementar exigia o trânsito em julgado de condenações criminais para assentar a inapropriada vida pregressa do pretenso candidato a mandato eletivo, impossível era negar o registro de candidatura de quem tivesse vida pregressa contrária à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato que não tivesse contra si decisão judicial condenatória definitiva.

O debate judicial, porém, não estava ainda encerrado. A matéria foi posta a exame do Supremo Tribunal Federal, por meio de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pela Associação dos Magistrados do Brasil (ADPF 144). Nessa ação, a AMB argumentou que a norma constitucional do § 9° do Art. 14 da Constituição Federal possui eficácia plena e aplicabilidade integral, com o que não teriam sido recepcionados diplomas normativos infraconstitucionais anteriores (relembre-se que a redação do § 9° do Art. 14 foi conferida pela emenda constitucional de revisão n° 4/1994) que exigiam o trânsito em julgado de condenações para formalizar a vida pregressa contrária à moralidade para exercício de mandatos.

Todavia, também no STF, agora por maioria muito mais significativa do que aquela maioria obtida no TSE (no STF, apenas os Ministros Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa adotaram a tese de que a justiça eleitoral poderia, sim, negar registro de candidaturas a candidatos com vida pregressa incompatível com a moralidade, ainda que não tivesse contra si decisão judicial transitada em julgado; o Ministro Joaquim Barbosa exigia que, ao menos, essa condenação já houvesse esgotado as vias ordinárias), prevaleceram os fundamentos já adotados pela maioria no TSE.

2. O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral e a Iniciativa Popular para mudança na lei, de modo a dispensar o trânsito em julgado de condenações como fator de caracterização de vida pregressa incompatível com a moralidade para o exercício do mandato – a iniciativa popular da “Lei do Ficha Limpa”

O tema da vida pregressa compatível com a moralidade pública se somou a tantos outros relacionados a uma exigência da cidadania brasileira de que os mandatos públicos fossem exercidos com lisura, integridade, honestidade, boa-fé, tendo em vista corriqueiros abusos de poder e fortes e integrados esquemas de corrupção praticados no âmbito da Administração Pública Brasileira.

A sociedade civil organizada despertou para a necessidade – já apontada pela revisão constitucional de 1993/1994 – de que pessoas com vida pregressa incompatível com a moralidade, que possuam contra si histórico de condenações por práticas criminosas contra a Administração Pública, ou práticas de crimes eleitorais ou atos de improbidade administrativa, não merecem da sociedade sequer a possibilidade de disponibilizar os seus nomes à apreciação do voto popular nas eleições. Era preciso quebrar o círculo vicioso que permitia aos contumazes praticantes de crimes contra a Administração Pública perpetuar-se no poder, mediante exercício de mandatos eletivos, por meios dos quais – não possuindo qualquer constrangimento – faziam uso político e até administrativo inadequado para viciar a vontade popular expressa nas urnas (abuso de poder político e econômico, captação ilícita de sufrágio etc.). Noutras palavras: era preciso dar concretude à previsão do § 9° do Art. 14 da Constituição e garantir que pessoas inidôneas para o exercício de representação política pudessem candidatar-se a mandatos de representação; era preciso dar efetividade à determinação do § 9° do Art. 14 da Constituição para tornar inelegíveis as pessoas inidôneas; era preciso garantir a inelegibilidade dos “ficha-suja”, ou, melhor ainda, garantir que somente candidatos “ficha-limpa” possam ser eleitos para representação política da sociedade.

Como o debate judicial intenso, travado de 2006 a 2008, revelou o obstáculo jurídico – a lei complementar que regulamentava o § 9° do Art. 14 da Constituição exigia o trânsito em julgado das condenações – estava lançada a ideia da iniciativa popular de lei complementar que viria a ser conhecida como a “Lei do Ficha Limpa”.

Essa ideia foi abraçada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – movimento que conta com a presença e participação de diversas entidades da sociedade civil em âmbito nacional, a exemplo da  Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – que capitaneou campanha pela coleta de assinaturas necessárias à apresentação, à Câmara dos Deputados, do projeto de lei de iniciativa popular, que acabou dando origem à “Lei do Ficha Limpa”.

Esse projeto de lei de iniciativa popular se juntou a outros que já tramitavam no Congresso Nacional e foi consolidado junto a outras propostas de alteração da lei das inelegibilidades, resultando no projeto de lei complementar n° 58/2010, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados e aprovado no Senado Federal, com alterações redacionais, sendo remetido ao Presidente da República, que o sancionou, com o que ingressou no ordenamento jurídico a Lei Complementar n° 135/2010, a “Lei do Ficha Limpa”.

3. As inovações da “Lei do Ficha Limpa”

A redação final aprovada pelo Senado Federal e sancionada pelo Presidente da República introduz inúmeras mudanças na Lei Complementar n° 64/90 (Lei das Inelegibilidades), mas a principal delas, naquilo que mais diretamente está relacionada ao tema deste artigo, é a mudança da redação da alínea “e” do inciso I do Art. 1° da Lei Complementar n° 64/90, que passou a ser a seguinte:

"Art. 1º São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
(…)
c) o Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal e o Prefeito e o Vice-Prefeito que perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual,da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos;
d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;
3. contra o meio ambiente e a saúde pública;
4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
8. de redução à condição análoga à de escravo;
9. contra a vida e a dignidade sexual; e
10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;
f) os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompatíveis, pelo prazo de 8 (oito) anos;
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;
h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
…………………………………………………………………………………………………………..
j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;
k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura;
l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;
m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário;
n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão que reconhecer a fraude;
o) os que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário;
p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22;
q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos;"
(grifou-se).

Consagrada estava, em lei complementar, a exigência de vida pregressa compatível com a moralidade como critério para aferição de preenchimento de requisito para deferimento de registro de candidaturas a cargos eletivos; vida pregressa que passava a ser considerada incompatível com a moralidade já a partir de condenações judiciais pela prática de diversos crimes, ainda que tais condenações não tivessem sido definitivas, mas pelo menos houvessem sido definidas por órgão judicial colegiado.

4. Controvérsias sobre a constitucionalidade da “Lei do Ficha Limpa” com a Constituição

A definição, em lei complementar (de iniciativa popular) dos critérios que permitam à Justiça Eleitoral negar registro de candidaturas de quem não possua “ficha limpa”, superando então o principal obstáculo anteriormente apontado para isso, não foi suficiente para eliminar as controvérsias jurídicas sobre o assunto.

Com efeito, foram apontadas as seguintes supostas inconstitucionalidades na “Lei do Ficha Limpa”: a) não poderia se aplicar às eleições do ano de 2010, tendo em vista o disposto no Art. 16 da Constituição Federal; b) não poderia se aplicar àqueles que já tivessem sofrido as condenações por órgão judicial colegiado anteriormente à entrada em vigor da lei, sob pena de violação do princípio constitucional da irretroatividade das leis, sobretudo quando prejudiciais aos réus; c) violação da garantia constitucional fundamental que consiste na “presunção da não culpabilidade” (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” – Art. 5º, inciso LVII).

5. A decisão do STF pela incaplicabilidade da “Lei do Ficha Limpa” às eleições de 2010

Somente na data de 23/03/2011, quando já realizadas as eleições de 2010, o Supremo Tribunal, com composição integral (após a chegada, à Corte, do Ministro Luiz Fux, na vaga gerada com a aposentadoria do Ministro Eros Grau, em agosto de 2010), examinou a constitucionalidade da aplicação da Lei do “Ficha-Limpa” (Lei Complementar n° 135, de 04/06/2010, publicada no Diário Oficial na data de 07/06/2010) às eleições ocorridas no ano anterior.

Essa controvérsia decorreu da previsão do Art. 16 da Constituição Federal, que prevê expressamente que “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Como a publicação da nova lei ocorreu em período anterior a um ano das eleições de outubro, ficou a dúvida quanto à aplicabilidade de seus comandos já para as eleições de 2010.

Por seis votos a cinco, o STF decidiu, no julgamento do Recurso Extraordinário n° 633703 – interposto pelo candidato a deputado estadual em Minas Gerais, Leonídio Correa Bouças, em face de decisão tomada pelo Tribunal Superior Eleitoral (que decidira ser plenamente aplicável às eleições de 2010 a lei do “ficha-limpa”) – que a lei do “ficha-limpa” não se aplica à eleições de 2010, porque essa aplicação é vedada pelo Art. 16 da Constituição da República.

A maioria dos ministros do STF -maioria que se formou com a adesão do Ministro Luiz Fux ao entendimento já externado no ano anterior pelos Ministros Cezar Peluzo, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Marco Aurélio e Dias Toffoli – decidiu que a lei do ficha-limpa versou, sim, normas sobre o processo eleitoral, incidindo no caso a proibição do Art. 16 da Constituição Federal.

Mais ainda, essa mesma maioria considerou que a norma do Art. 16 da Constituição é cláusula pétrea, sendo impossibilitada a sua abolição até mesmo por meio de emenda à constituição, sendo impossível que mera lei complementar frustre os seus comandos.

A minoria, formada pelos Ministros Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia e Ellen Gracie, adotou o entendimento segundo o qual normas sobre inelegibilidade não tratam propriamente do processo eleitoral, não esbarrando portanto no obstáculo imposto pelo Art. 16 da Constituição à aplicação da lei do ficha-limpa às eleições de 2010; ademais, potencializaram o disposto no Art. 14, § 9°, norma constitucional que impõe a previsão, em lei complementar, de hipóteses de inelegibilidade fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato considerada a vida pregressa do candidato.

Penso que a controvérsia merecia outra solução; também senti falta de um debate mais aprofundado sobre a interpretação teleológica do Art. 16.

Isso porque a norma do Art. 16 da Constituição Federal é norma que possui o claro objetivo de garantir segurança jurídica ao processo político-eleitoral, evitando a ocorrência de casuísmos eleitorais, realizáveis conjunturalmente por maiorias eventuais em proveito próprio.  Assim, as regras das eleições deverão estar definidas e serem do conhecimento de todos os envolvidos no processo com antecedência mínima de um ano, para que tenham tempo suficiente para as necessárias adaptações e preparações políticas, jurídicas, técnicas e operacionais, mas isso com vista a impedir que maiorias legislativas eventuais ou duradouras façam proveito dessa condição para mudar as regras do jogo às vésperas das eleições, com o claro propósito de benefício próprio e de prejuízo a correntes políticas de oposição ou eventualmente minoritárias.

Nesse sentido, aliás, já se posicionara o Ministro do STF, Celso de Mello:

“O legislador constituinte, atendo à necessidade de coibir abusos e casuísmos descaracterizadores da normalidade ou da própria legitimidade do processo eleitoral, e sensível às inquietações da sociedade civil, preocupada e indignada com a deformante manipulação legislativa das regras eleitorais, em favor de correntes político-governamentais detentoras do poder, fez inscrever, no texto constante do art. 16 da nossa Carta Política, um postulado de irrecusável importância ético-jurídica” (voto no RE 129392).

Não é o caso, porém, da lei de inelegibilidade dos “ficha-suja”. A sua aprovação não decorreu de um casuísmo golpista de maioria parlamentar em proveito próprio. Muito pelo contrário, a sua aprovação decorreu de formal iniciativa popular (a iniciativa da lei não foi parlamentar, mas sim direta do povo brasileiro, nos termos do § 1° do Art. 61 da Carta Política) e intensa mobilização social. O Congresso Nacional aprovou o projeto a reboque de intensa e legítima pressão da opinião pública, capitaneada por entidades representativas da sociedade civil. Aliás, o líder do Governo no Senado Federal – em momento de extrema infelicidade mas de rara sinceridade – chegou a declarar que a sua tramitação no Senado não era prioritária porque não se tratava de uma demanda do governo e sim de uma demanda da sociedade. Foi tragado pela mobilização popular, que levou-o e a todo o Senado a reconsiderar esse pensamento e agilizar a sua tramitação até aprovação final.

Logo, não há temor de que essa alteração do processo eleitoral traduza casuísmo golpista ou manobra reprovável a favor de determinada maioria política. Se dependesse exclusivamente da vontade política do Congresso Nacional, a novidade legislativa não seria aprovada. Do que se conclui, em interpretação teleológica, que não incide, aí, o comando do Art. 16 da Constituição Federal.

Demais disso, essa novidade legislativa de iniciativa popular e intensa mobilização social – expletiva da mais legítima manifestação direta do exercício, pelo povo, de sua soberania – veio ao encontro de outro comando constitucional da maior importância: o do § 9° do Art. 14, que determina que a lei complementar deve estabelecer casos de inelegibilidades a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato. Noutras palavras, essa iniciativa legislativa popular atendeu a uma convocação constitucional já presente desde 1994 (data em que foi aprovada pela revisão constitucional a atual redação do dispositivo do § 9° do Art. 14). Chegou tarde, portanto, mas não tão tarde que não pudesse ser aplicada já para as eleições de outubro de 2010.

Pena que o STF não tenha assim considerado. Pena que o STF pouco tenha examinado essa específica controvérsia à luz dessas considerações finalísticas do Art. 16 da Constituição da República. Restava continuar defendendo a sua constitucionalidade, para aplicação, ao menos, nas eleições futuras.

6. A decisão do STF pela aplicabilidade da “Lei do Ficha Limpa” a fatos ocorridos anteriormente à sua vigência

Uma suposta inconstitucionalidade apontada na “Lei do Ficha Limpa” seria a violação do princípio constitucional da irretroatividade das leis, com o que não seria possível aplicá-la a fatos ocorridos anteriormente à sua vigência (noutras palavras, somente valeriam, para fins de caracterizar a inelegibilidade prevista pela “Lei do Ficha Limpa”, condenações por órgãos judiciais colegiados ocorridas após a sua entrada em vigor, em 07/06/2010).

Sempre sustentamos o entendimento segundo o qual todos os que se enquadrem naquelas situações previstas na “Lei do Ficha Limpa” ficam inelegíveis no período ali estabelecido.

Defendemos que não havia aí qualquer incompatibilidade com a garantia constitucional contra a irretroatividade das leis (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” – inciso XXXVI do Art. 5° da Constituição Federal). A aplicabilidade imediata da Lei Complementar n° 135 não violará direito adquirido de ninguém, eis que ninguém possui direito adquirido a ficar imune a imposição de situações de inelegibilidades que decorrem de expressa imposição constitucional; também não violará ato jurídico perfeito, pois ainda não houve o deferimento do registro de nenhuma candidatura; de igual modo não há ofensa à coisa julgada.

Irretroatividade vedada pela Constituição só haveria se a aplicação da norma fosse ter o condão de desconstituir mandatos eletivos, em curso quando da entrada em vigor da Lei do Ficha Limpa, conquistados por pessoas que, à época do registro de suas candidaturas, já tivessem condenações judiciais proferidas por órgãos colegiados.

Não é isso que se pretende, porém. A iniciativa popular, que levou à aprovação da Lei Complementar n° 135, tem o objetivo de impedir que, doravante, possam registrar candidaturas a mandatos eletivos as pessoas que possuam condenação pela prática de determinados crimes proferidas por órgão judicial colegiado, ainda que não transitada em julgado (para isso, tanto faz se essas condenações já tenham ocorrido ou venham a ocorrer). E que isso seja norma permanente do nosso direito eleitoral.

Toda essa forma de encarar a controvérsia também encontra respaldo na própria LC n° 135. É que, por ela, será possível ao órgão judicial ao qual incumbe o julgamento dos recursos contra as decisões colegiadas “(…) em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida” (Art. 26-C da LC n° 64/90, acrescentado pela LC n° 135/2010). E, também por ela – LC n° 135 – será possível o aditamento dos recursos interpostos antes de sua vigência para o fim de ser efetuado o pedido expresso de concessão cautelar da suspensão da inelegibilidade (Art. 3° da LC n° 135). Ora, essa norma só faz sentido se se considerar a incidência dos comandos da LC n° 135 também para aqueles que já tinham sofrido as condenações judiciais por órgãos colegiados antes de sua entrada em vigor.

Ao final do julgamento das ADCs n°s 29 e 30 e ADI 4578 (julgamento finalizado na data de 16/02/2012), por maioria de 6 x 5, o STF decidiu que não viola a Constituição a caracterização da inelegibilidade decorrente de condenações por órgão judicial colegiado ocorridas antes da entrada em vigor da Lei do Ficha Limpa (compuseram a maioria os Ministros Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Carmem Lúcia, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber; compuseram a minoria os Ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Marco Aurélio e Cezar Peluso).

7. Decisão do STF no sentido de que a “Lei do Ficha Limpa” não viola a presunção constitucional de inocência

Ao concluir o julgamento das ADCs n°s 29 e 30 e ADI 4578 (julgamento finalizado na data de 16/02/2012), o STF, por maioria de 7 x 4, decidiu que a Lei do Ficha Limpa não viola a presunção constitucional de inocência (compuseram a maioria os Ministros Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Carmem Lúcia, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Rosa Weber; compuseram a minoria os Ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cezar Peluso).

Prevaleceu, em resumo, a tese segundo a qual quando alguém é condenado criminalmente, mas ainda pende julgamento de recurso que pode reverter o resultado da condenação, tem a garantia de não já ser considerado culpado, porque o prejuízo que pode advir a esse alguém diante de uma futura absolvição no julgamento do recurso pode ser irreparável ou de difícil reparação, como por exemplo se já fosse obrigado a cumprir pena (que poderia ser de prisão) e depois ser julgado que a pena era incabível e injusta. Mas quando alguém for impedido de obter o registro de sua candidatura por ter sua vida pregressa considerada ofensiva à probidade administrativa e à moralidade para a representação democrática (ainda que sem condenação definitiva) e vier a obter futura absolvição em julgamento de recurso, o benefício da dúvida foi coletivo, porque diante da razoabilidade melhor terá sido evitar a candidatura daquele que poderia ser realmente culpado e ter uma vida pregressa que não recomendasse o exercício de mandatos eletivos, em prejuízo da autenticidade maior do sistema democrático-representativo. E o prejuízo individual terá sido apenas a frustração de um direito potencial de representar segmentos da sociedade, mas sem maiores seqüelas individuais, como seria o cumprimento imediato de pena injusta. É a consagração de que a garantia constitucional da presunção de não culpabilidade até o trânsito em julgado de sentença condenatória é garantia própria ao direito penal, mas não aplicável ao direito eleitoral, não aplicável ao tema das inelegibilidades, não aplicável à proteção constitucional à autenticidade e pureza do sistema democrático-representativo.

8. Eleições com “Ficha Limpa”

As controvérsias jurídicas estão, para fins de aplicabilidade prática, oficialmente encerradas. Candidatos com “ficha suja” (para caracterização dessa ficha suja, bastará condenação por órgão judicial colegiado, ainda que não definitiva) terão o registro de suas candidaturas negado pela justiça eleitoral.

Como aqui abordado, as polêmicas que envolveram o tema foram bem intensas, dividindo a comunidade jurídica, divisão revelada também nos acirrados debates e nos apertados placares de votação do julgamento da matéria no STF.

O debate foi rico, produtivo. Não imputemos aos juristas (inclusive aos Ministros do STF que ao final viram seus pontos de vista ser derrotados) que defenderam a inconstitucionalidade da lei do ficha limpa qualquer má vontade com o aperfeiçoamento da democracia representativa brasileira. Ao contrário, seus pontos de vista foram expostos publicamente, de forma transparente, sustentando convencimento sincero de inconstitucionalidades da norma. Pontos de vista que, contudo, não prevaleceram ao final.

Agora, é com o eleitor soberano. A plenitude de um sistema representativo melhor qualificado na perspectiva da moralidade, honestidade, probidade, seriedade de propósitos, depende da soberana manifestação popular, por meio do seu voto secreto, afastados da possibilidade de serem eleitos os que tenham vida pregressa com “ficha suja”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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