Crepúsculo de Esplendores

Santo Souza, mago nascido em Riachuelo, poeta em Aracaju, fez do português uma língua universal, não porque sua obra circule nos vários cantos civilizados do mundo, onde a poesia seja bem recebida como representação estética da angústia humana, mas pela sua temática órfica, tratada com originalidade, no amálgama de velhas tradições e cosmogonias inesgotáveis, onde a matéria é o caos, manejada com arte perfeita de quem domina a forma constrói, seguidamente, livro a livro, uma obra definitiva, atemporal, própria dos grandes que fizeram da literatura uma linguagem essencialmente humana.

            No ano passado, de 2008, Santo Souza ofereceu um livro novo – Deus Ensangüentado – como prenda natalícia dos seus 89 anos. Um espanto, que alguém com tanta idade, tendo sido filho do sofrimento e da dor perene, fosse capaz de compor algo novo, com as palavras do seu dicionário íntimo, onde cada termo toma, na linha do verso, um sentido próprio, preciso, exato, como chave impenetrável dos segredos de sua arte alquímica. Pois o bruxo de Riachuelo, que no dia 27 de janeiro completou 90 anos, escreveu novo livro – Crepúsculo de Esplendores – que, certamente, não é o último. A voz ainda forte, lendo em voz alta sua legenda órfíca, vence o peso da idade, e todos os senões corporais, para manter-se duplamente vivo: na conta do tempo, na sintonia mágica da sua poesia. Haverá sempre em Santo Souza um pós escrito, até calar-se com seus anjos e demônios, na imensidão imponderável que corteja.

            Entre os sergipanos, Santo Souza é o poeta com maior obra e com um sotaque irretocável tratando da condição humana, hierarquizando o sentimento que, em essência, garimpa fragmentos de culturas, restos perdidos de antiguidades, mitificados em torno de divinizações. É, ao seu modo, um Quixote com sua livraria antiga, alimentando a alma mortalizada dos deuses e dos heróis, esgrimando, como soldado de suas próprias causas, com tempestades, mares revoltos, céus ameaçadores, estrelas quebradas pelos raios de luz que encandeiam os seus olhos fixos no portal da eternidade. Desde que publicou Ode Órfica, em 1955, que Santo Souza deixou pelo caminho poemas soltos, crônicas, páginas inspiradas nas ruas noturnas que foram cenários imediatos de sua visão crítica, para buscar nas entranhas do mundo a razão de sua poesia. Desde então, mais de meio século de muitas obras, muitos títulos – Pentáculo do Medo, A Ode e o Medo, Âncoras de Argo, A Construção do Espanto, Ésquilo na Tormenta, Deus Ensangüentado -, sem fechar o círculo de suas fontes, com as quais revira céus e infernos, na ânsia de esclarecer sobre a vida e a morte com suas fatalidades.

            Santo Souza é um tipo de sábio que utiliza a linguagem poética para conferenciar o conhecimento oculto, que parece um mundo nebuloso, ofuscado e tenebroso, como um espelho antigo e suas revelações. A poesia de Santo Souza não tem a linearidade das palavras mais sonoras e cativantes, mas porta, em estrofes de versos muito bem contados com suas significações, uma seiva esclarecedora, como os anais da história humana que o tempo tem esquecido. Ainda assim, qualquer página, de qualquer dos seus livros, é um êxtase sem comparação, de qualidade estética, de reflexão, de construção poética verdadeiramente inigualável. A surpresa torna-se maior, quando o relógio dos anos atesta a sua longa existência de 90 anos, válida e útil, produtiva e estimulante, como nascente perene irrigando a terra com sua força corrente.

            Crepúsculo de Esplendores é um título adequado à obra última. Não que seja uma despedida, um último suspiro, que tanto animou o romantismo brasileiro, um final, mas um fecho provisório, dentre tantos que a obra santosoziana inspira, para tornar-se ainda mais hermética, um documento a ser decifrado. Esplendorosa em sua forma, a poesia contida no novo livro é repleta de alegorias e maravilhas, que envolvem de beleza a criação literária. Sendo, como escritor, um ordenador do caos, um reinventor de realidades, Santo Souza dilata o mundo de sua interpretação da vida e da história humana, para muito além das âncoras da cartografia. E como capitão piloto de uma nau aventureira, decifrando segredos e confidências, o poeta ainda caça, com o velho archote dos seus olhos cansados, os labirintos do bem e do mal, que selam a condição existencial da humanidade, como uma marca inviolável, um enigma recorrente a espera do retorno de Édipo ao portal de Tebas.

            Incomparavelmente grande em Sergipe, entre os maiores do Brasil e um dos que dão universalidade à língua portuguesa ( como fez Camões quando criou uma epopéia para os mareantes patrícios que tomaram os mares na aventura de suas caravelas em procura de novas terras, arquivando as imaginárias inspirações), Santo Souza reinventa a poesia e do altar órfico que construiu maneja a harpa das suas visões míticas e místicas com as quais modela seus textos lúdicos e lúcidos, Deus de si mesmo.     

           

            

           

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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