Cristãos e Mouros em São Cristóvão

                                                                                                                      Luiz Antonio Barreto

 

 

A  cidade de São Cristóvão, que tem este título e o estatos desde a sua fundação, em 1590, pelo Governador Interino do Brasil, Cristóvão de Barros, candidatou-se a ser patrimônio da humanidade. Os argumentos de defesa da candidatura, que estão sendo avaliados na UNESCO, se voltam para a arquitetura, o turismo, e outras qualidades da antiga capital da Província de Sergipe. Há, ainda, muito a acrescentar, para que aquele cenário de um guerra cruel, seja convertido num troféu de história e de cultura, como um bem partilhado por sergipanos, brasileiros e estrangeiros.

 

O conquistador Cristóvão de Barros, acostumado a matar indígenas no Rio de Janeiro, estava na circunstância investido do Poder no Brasil, como Provedor da Fazenda, ao lado do Bispo Dom Antonio Barreiros, pela falta de um Governador Geral. O Governador nomeado em 1588, Francisco Giraldes, tinha morrido em Lisboa, antes de viajar para o Brasil. A guerra comandada por Cristóvão de Barros, mais do que estratégia política, ditada por algumas necessidades brasileiras, como abrir uma estrada entre as Capitanias de Bahia e Pernambuco, e extrair o Salitre, com as vistas voltadas para um projeto de montagem de uma fábrica de pólvora, tinha conotações outras, decorrentes da situação vivida por Portugal dominado pela coroa espanhola, desde 1580.

 

A conquista de Sergipe e a conseqüente fundação de São Cristóvão atendem interesses da Espanha e são revestidos de características da cultura religiosa espanhola. Para começar, o conquistador serviu-se do nome de um seu homônimo, Dom Cristóvão de Moura, para evocá-lo em homenagem que tem resistido no tempo, ligando-o ao da cidade. Em seguida, o Orago da conquista era Nossa Senhora da Vitória, invocação católica decorrente da Guerra de Lepanto, 9 anos antes, quando a bandeira azul da Santa Liga, formada pela Espanha, por Veneza e pela Santa Sé, comandada por Dom João de Áustria tremulou vitoriosa, na luta contra os infiéis, pondo fim a fama de invulnerabilidade dos turcos. A Batalha de Lepanto, finalizada em 7 de outubro de 1571, cumpriu a exortação feita pela hierarquia do catolicismo romano: “Tomai estas insígnias do verbo que se fez carne, estes símbolos da  verdadeira fé, e que eles vos concedam uma gloriosa vitória sobre o nosso ímpio inimigo e pela vossa mão seja o orgulho destruído.”

 

A guerra era santificada e o Papa havia declarado que aqueles que lutassem nessa batalha receberiam as mesmas indulgências plenas que os antigos cruzados que lutaram para defender o Santo Sepulcro, em Jerusalém.

 

Ainda hoje São Cristóvão tem, como padroeira, Nossa Senhora da Vitória, celebrada a 8 de setembro, em torno da qual os festejos religiosos projetam, com sua lúdica, antiga fidelidade. Os dominicanos interpretaram Lepanto e atribuíram ao Rosário de Nossa Senhora a força motriz responsável pela vitória na guerra. Surgiu, então, ao lado de Nossa Senhora da Vitória, a invocação de Nossa Senhora do Rosário, também cultuada em São Cristóvão e em muitas outras localidades sergipanas, justo no primeiro domingo do mês de outubro. No século XIX Nossa Senhora do Rosário passou a reunir as festas dos negros escravos.

 

São Cristóvão, tendo Nossa Senhora da Vitória como Padroeira  da Freguesia, processou em Sergipe uma projeção que repetia, nos autos e nos folguedos, as lutas constantes entre cristãos e mouros. Indígenas e negros foram convertidos em infiéis, enfrentados como inimigos da fé, vencidos e catequisados. Sobrevivem as Cheganças como testemunho de tais confrontos, entre a cristandade e o Islã, que podem ser vistas e acompanhadas nas festas de São Benedito e de Santos Reis em Laranjeiras, Japaratuba e noutros lugares sergipanos. O Anuário Cristovense, manuscrito inédito de Serafim de Sant’Iago, está repleto de manifestações culturais que põem no centro, e em luta, os cristãos e os mouros, tanto em setembro, na Festa da Padroeira, como em outubro, na festa de Nossa Senhora do Rosário.

 

A Nau da Cristandade aborda o Quartel da Mourama, troca embaixada e pretende converter os islâmicos ao Cristianismo. Nos versos da Chegança, cantados pelo Capitão Piloto e pelos mouros, aflora o interesse catequético:

 

                        “Entregai-vos corsários

                        à Santa Religião,

                        aqui dentro desta nau

                        temos ferro no porão.

                       

                        Não entrego, nem pretendo

                        Que não é da nossa lei

                        Somos filhos da Turquia

                        Temos fama de guerreiros.

 

                        Entregai-vos corsários

                        À Santa Religião,

                        Aqui dentro desta nau

                        Temos padre capelão.”

 

Cansados e vencidos, não restava aos mouros mais do que a capitulação, como cantam:

 

                        “ Batismo já nós pedimos

                        ao senhor padre capelão

                        para ver se assim nos livramos

                        dos ferros deste porão.”

 

Vitorioso, o padre recita:

 

                        “Com água eu vos batizo

                        mouros, infiéis, pagãos,

                        que depois de batizados

                        de mouros serão cristãos.”

 

São Cristóvão repete, ainda hoje, através do folclore, as bases da conquista de Sergipe e da sua fundação, inspirada na Guerra de Lepanto e na invocação de Nossa Senhora da Vitória. Nos seus três largos de bela arquitetura – o Largo do São Francisco, o da Matriz e o de Senhor dos Passos – transitam homens e mulheres devotos, cientes de que os costumes locais se espalharam por outras comunidades de Sergipe, onde as lutas de cristãos e mouros tomam diversas feições, como são exemplos a Cavalhada, de Poço Redondo e de Canindé, a Chegança, de Lagarto, de Japaratuba, de Laranjeiras e de Itabaiana, dentre muitas outras refregas que integram, com seus valores, a cultura sergipana.

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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