A cultura do povo, nas suas variadas e simples formas de manifestação, não é apenas a festa esperançosa dos figurais nas ruas, cantando loas e evoluindo na coreografia das danças. Nem tampouco é apenas o lúdico restrito, para ornar o universo da criança e da sua coletividade cultural. A cultura popular é um documento. Um completo e original e permanente documento, que funciona como armadura coletiva, a proteger os feitos e as ações populares no contexto das sociedades. Assim como o instante é a extremidade do tempo, o grupo folclórico é a extremidade social, que nasce e vive na comunidade próxima, e que carrega o poder estandartizado de comunicar-se, com suas sabenças e suas artes, suas linguagens de alma e de corpo, com os demais aglomerados humanos.
O Nordeste é uma imensa casa grande, em torno da qual o povo faz e conta estórias, que são expressões dominadas de uma história mais ampla, que é de fatos e de pessoas, de feitos e de avanços. Tem cabido ao povo nordestino a guarda dos acervos, dos repertórios, de cujos mostruários e exposições se tem a mais deslumbrada visão, quando nas ruas e praças, nos mercados e nas feiras, no São João ou no Carnaval, no Natal ou na Quaresma, o povo veste a sua alma de arte e professa entre cantos, gestos e danças, a sua sobrevivência.
E não tem sido fácil sobreviver no Nordeste.
Esta região, que foi o berço da civilização brasileira, viu nascer uma aristocracia fundiária, da linhagem dos conquistadores, da mesma forma como para servi-las contou com escravos, camponeses e empregados domésticos, de quem descende o povo, como mostra o sistema rígido de duas classes que estão, ainda hoje, evoluindo em suas trajetórias. E nesse confronto, nunca exacerbado, de forças, forjou-se o paternalismo, passado e recibado, tanto pela Monarquia, como pela República que a substitui, como ensinou o mestre Gilberto Freyre.
Na sua circunstância histórica e social, o homem nordestino se fez guia de um universo submisso, da mesma forma como foi feito guardião de uma resistência que transborda na crítica, como é possível constatar nos folguedos, na literatura de cordel, nos cantos, nos ditos, e nos contos populares. É claro que o homem do povo encarnou, ao longo do tempo, seu papel na hierarquia da sociedade. Foi escravo de muitos senhores, como tem sido trabalhador de muitos patrões. Foi camponês sem terra nos latifúndios dos coronéis, como tem sido peão, na construção civil, dos novos ricos. Foi empregado doméstico, vaqueiro, e como tais cuidara, ao longo da vida, de bens que não lhe pertenciam.
Tal homem nordestino, tal povo do Nordeste, com seus valores transcendentais, suas emoções, seus bons humores, seus fatalismos, suas esperanças, é o personagem central da cultura popular, ainda que reis e rainhas, príncipes e princesas, castelos e campos floridos, povoem e cenarizem seus guardados literários e memoriais.
Na acomodação ao ambiente, na apara adaptadora, e na resistência é que surgem as opiniões críticas, identificando, como o fez Bráulio do Nascimento, os efeitos da mudança social sobre a cultura. A visão do pesquisador não exclui outros parâmetros que, paralelamente, fortalecem e adornam a genuinidade da amostra pluralizada pelo seu interesse de estudioso, atraindo para o centro do raciocínio, o conto popular, ficção que resiste no tempo. É possível observar, então, o ritmo das mudanças sociais, ditados pelas peculiaridades da economia nordestina, que ainda não rompeu com o cerco arcaico de sua organização feudal, nem alicerçou alternativas que a desenvolva, além dos programas compensatórios, como a Bolsa Família.
Numa região onde a dependência à natureza, e a atividade econômica é dependente à forma de produção, que nem sempre incorpora tecnologia recente, não há transformação que possa determinar um ritmo acelerado de mudanças sociais, mesmo porque se afirma, no campo ótico dos economistas, que não há mudança social sem atividade econômica, sem tecnologia. Economicamente inativo o homem nordestino representa uma maioria, cuja dominação é abrandada pelas relações mais próximas que estabelecem com os patrões, os chefes, os senhores, os compadres, que também podem ser os governantes, deputados, líderes políticos, vereadores, cabos eleitorais, que remetem, salvo melhor juízo, ao nascedouro do paternalismo.
Nos seus símbolos, o povo mascara as funções de suas manifestações, com a sagacidade que os personagens do conto popular e da literatura de Cordel, como Pedro Malazartes, João Grilo, costumam evidenciar em suas aventuras e feitos. As cores, tão simbólicas em seus matizes, têm poder especial diante das platéias. Os Reisados, com seus cordões Azul e Encarnado (Vermelho) fornecem ao povo duas opções partidárias, alimentando a dicotômica relação que é embutida em sua própria existência e sobrevivência Para cada partido, ou cordão, a cor e com ela a agitação do palhaço, também figura simbólica que esconde, na máscara e no riso, como a determinar o sujeito, o poder da crítica, ao tempo em que estimula a opção e, não raro, o confronto. O Reisado arma e desenvolve um jogo que não se completa porque a Dona do Baile, a Dona Deuza, limita a apresentação.
Certamente a cultura popular revela melhor o Nordeste que existe em São Paulo, da mesma maneira como poderá revelar qual será o futuro social das classes que, lentamente, emergem dos afazeres mais submissos e travam contato com o universo mais amplo de interesses e problemas mais gerais.