No dia de hoje, 18 de fevereiro, há 213 anos, o Brasil ganhava a sua primeira escola de medicina. Para isso, um fato foi decisivo: a presença, no país, do Príncipe Regente D. João VI, e toda a sua corte, recém chegados de Portugal. Dias antes, em 28 de janeiro de 1808, ele havia assinado o primeiro ato civil no Brasil, a Carta Régia da Abertura dos Portos brasileiros.
Na nau capitânia da esquadra lusitana, às terras do Brasil, estava o médico de naturalidade pernambucana Doutor José Correa de Picanço (foto), graduado na Universidade de Coimbra e da qual era Lente Jubilado de Anatomia. Mas o que fazia o brasileiro nessa “aventura?”
Natural de Goiana, então vila e capital de Pernambuco, onde nasceu em 10 de novembro de 1745, aprendeu a profissão de cirurgião-barbeiro com o pai e aos 21 anos foi nomeado cirurgião do Corpo Avulso de Oficiais de Ordenança dos Estrados e Reformados. Licenciou-se em cirurgia em Lisboa e depois em Paris, pela Universidade de Montpellier, onde obteve o grau de “Officier de Santè e, anos depois, o título de doutor em Medicina.
Em Lisboa, exerceu vários cargos, como cirurgião-mor dos Exércitos do Reino, cirurgião da Real Câmara, primeiro médico da Casa Real e do Conselho de D. João. Participou da junta médica que, em 1792, examinou e declarou insana a rainha D. Maria I.
Quando da viagem real para o Brasil em 1807, Picanço foi escolhido Cirurgião-Mor do Reino e do Conselho e, portanto, fez a travessia ao lado do Príncipe-Regente. Em Salvador, sugeriu a criação da primeira escola escola médica brasileira, na época denominada Escola de Cirurgia. Vale ressaltar que até então era proibido o ensino superior no Brasil. Ao acatar a sugestão, D. João VI determinou, em 18 de fevereiro de 1808, ao presidente do Conselho, D. Fernando José de Portugal, governador da Capitania da Bahia de 1788 a 1801, que também integrava a comitiva real, que encaminhasse ao atual governador da Capitania, D. João Saldanha da Gama Mello e Torres (1808-1810), a Carta Régia de fundação da escola.
Em novembro do mesmo ano, Correa Picanço se tornaria também o principal responsável pela implantação do ensino de anatomia e cirurgia no Rio de Janeiro, no Hospital Militar do Morro do Castelo. A imagem que ilustra esse texto, um óleo sobre tela (63 cm por 52 cm) do Dr. Picanço, de autoria do pintor açoriano Vicente Mallio, foi fotografada por mim em uma das visitas que fiz à sede da Academia Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro. Retratista por excelência, foi muito cultuado na cidade na segunda metade do Século XIX, retratando personalidades importantes da Corte, como D. Pedro II, a Princesa Isabel e a Imperatriz Teresa Cristina, obras que constavam do acervo do Museu Histórico Nacional. Mas a pinacoteca da Academia reservaria ainda para mim fortes emoções, que contarei no final desse artigo.
Voltando ao Dr. Picanço, consta que ele acompanhou o parto da Imperatriz Maria Leopoldina, do qual nasceu D. Maria da Glória, futura rainha de Portugal. Foi pioneiro no uso de cadáveres humanos no ensino da Anatomia. Em 1817, no Hospital Militar de Recife, fez a primeira operação cesariana no país, em uma paciente negra, escrava, e que sobreviveu. Por esse pioneirismo, é tido como o Patrono da Obstetrícia Brasileira. Em março de 1821 recebeu de D. João, o título de Barão de Goiana.
Como reconhecimento da sua importância, no III Congresso Brasileiro de História da Medicina, realizado em 1958, foi aclamado o “Patriarca da Medicina Brasileira”, nas comemorações do sesquicentenário do ensino médico no Brasil.
O nosso “Patriarca” faleceu no Rio de Janeiro em 23 de janeiro de 1823, cinco anos antes da fundação da Academia Nacional de Medicina, em 1829. Anos depois, em 1835, por decreto Imperial, a Academia foi adotada pelo governo para instituto oficial com o nome de Academia Imperial de Medicina. Curioso é que a primeira sessão da nova entidade teve como presidente o então príncipe D. Pedro II, na ocasião com apenas 9 anos de idade. Com sua maioridade, tornou-se o maior patrono da Instituição e durante 50 anos frequentou as suas sessões e presidiu diversas solenidades. Em 30 de junho de 1889, presidiu pela última vez a sessão de aniversário da Academia.
No acervo da ANM, além da cadeira que o imperador sentava e os óculos que ele usava, inteiramente preservados, encontra-se o seu Atestado de Óbito original, escrito e assinado por uma das maiores sumidades médicas da França, o famoso professor Charcot, mestre de Freud. Mas a maior surpresa estava reservada para o final. Com enorme satisfação, pude constatar a sua pinacoteca, com exuberantes quadros em “óleo sobre tela” retratando seus fundadores e outros personagens importantes da vida brasileira e, para minha surpresa, muitos deles de autoria do importante pintor sergipano Jordão de Oliveira, na década de 60. Os quadros de Jordão de Oliveira na ANM, extraordinários, merecem uma outra história, que contarei mais pra frente.