Defensoria Pública, igualdade real e justiça material

A Presidenta da República, Dilma Roussef, propôs, no Supremo Tribunal Federal, ação direta de inconstitucionalidade em face da emenda à constituição nº 74/2013, que alterou a Constituição da República para estender, à Defensoria Pública da União e do Distrito Federal, autonomia funcional e administrativa, bem como autonomia da iniciativa de sua proposta orçamentária, já anteriormente asseguradas às Defensorias Públicas dos Estados.

O único fundamento jurídico da ação: suposto vício de iniciativa, já que a proposta de emenda à Constituição que redundou na emenda n° 74/2013 foi de origem parlamentar, quando, a juízo da Presidenta da República, somente poderia ser proposta por ela mesma.

É que, ainda segundo a petição inicial, são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (Art. 61, § 1º, inciso II, alínea “c”).

Ocorre que sequer existe previsão constitucional de iniciativa privativa de quem quer que seja para emendas à Constituição Federal. Constituição que não atribui ao Presidente da República e a nenhum outro órgão ou autoridade iniciativa privativa para propositura de emendas à constituição que tratem de qualquer assunto. De acordo com o Art. 60, podem propor emenda à constituição, sem qualquer restrição de iniciativa privativa: a) 1/3, no mínimo, de deputados ou senadores; b) Presidente da República; c) mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se cada uma delas por maioria simples.

E não se alegue que, no caso, como se trata de organização administrativa envolvendo servidores públicos federais, haveria iniciativa legislativa privativa do Presidente da República, porque a Constituição estabelece que são de sua iniciativa privativa as leis que disponham sobre servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (Art. 61, § 1º, inciso II, alínea “c”).

Essa iniciativa privativa refere-se a leis, não se aplicando a emendas à constituição. Registre-se, uma vez mais, que não existe qualquer previsão constitucional de iniciativa privativa de emenda à constituição. Em se tratando de emenda à constituição, todos que podem propor podem fazê-lo em qualquer assunto.

A petição inicial aponta precedentes do próprio STF. Ocorre que os precedentes apontados (ADI 3930, ADI 2966, por exemplo) são no sentido de, em face do princípio da simetria, inconstitucionalidade de emendas a constituições estaduais em matérias que a Constituição Federal reserva à iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Nesses precedentes, apontou-se burla à iniciativa privativa de lei reservada ao Governador do Estado mediante emenda à constituição estadual de iniciativa e decisão exclusivamente parlamentar (deputados estaduais e Assembleia Legislativa). Mas isso porque essa estratégia fora utilizada para contornar exigência da Constituição Federal. No caso presente, a própria Constituição Federal é que foi emendada, e o poder constituinte reformador, atribuído ao Congresso Nacional sem qualquer registro de iniciativa privativa (como antes aqui se apontou), pode muito bem dispor sobre matérias que a Constituição tenha reservado às leis, e ao fazê-lo simplesmente altera a exigência original, sendo mesmo esse um dos papéis das emendas à constituição, qual seja, mudar as regras originais da Constituição, observados os procedimentos que ela exige e os limites que ela impõe, em especial as cláusulas pétreas.

Registre-se que, na ADI em que se argumenta suposta iniciativa privativa do STF para propor emenda à constituição que crie novos Tribunais (ADI n° 5017), já existe parecer do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, exarado em 24 de março de 2014, em que defende a inexistência de iniciativa privativa de emenda à constituição federal.

Essa lamentável iniciativa da Presidenta da República em impugnar, no STF, emenda à constituição que concede autonomia à Defensoria Pública da União, com o frágil fundamento jurídico da suposta iniciativa privativa para propositura de emenda à constituição, somente revela a falta de vontade política em efetivamente valorizar a Defensoria Pública.

Com efeito, é importante notar que a Constituição de 1988 ampliou a assistência a ser prestada pelo Estado aos necessitados.  Antes, era obrigação do Estado fornecer assistência judiciária, ou seja, fornecer advogados para, gratuitamente, intentarem as ações judiciais cabíveis e aplicáveis a cada caso, ou efetuar em juízo as defesas necessárias, assim como o acompanhamento dos respectivos processos até o termo final.  Com a promulgação da Constituição-Cidadã, o Estado é obrigado a prestar aos necessitados assistência jurídica integral, o que é bem mais amplo, porque contempla não somente a assistência judiciária, mas contempla também atividades de consultoria, de elaboração de documentos, formalização de atos jurídicos e de contratos, prestação de informações e de orientações quanto aos direitos dos cidadãos de uma forma geral.  A atividade profissional do Direito, principalmente na área da advocacia, não se limita à militância forense, ao acompanhamento dos processos judiciais, abrangendo também atividades de consultoria, de mediação, de informação e de conscientização dos cidadãos.  Tome-se o exemplo de uma pessoa comprovadamente sem recursos financeiros para pagar os honorários de um advogado particular que quer efetuar a compra de um produto em um estabelecimento comercial e possui dúvidas atinentes aos seus direitos de consumidor: deve o Estado, conforme expressa imposição do inciso LXXIV do Art. 5º da Constituição Federal, fornecer a assistência jurídica necessária a fim de esclarecê-las.

Para dar vazão a tão elevados propósitos, a própria Constituição determina, em seu Art. 134, que essa assistência jurídica aos necessitados será prestada diretamente através de uma específica instituição, que é exatamente a Defensoria Pública.

E o que é a Defensoria Pública? É uma instituição, essencial à função jurisdicional, totalmente custeada e mantida pelo Estado, composta de defensores públicos (agentes públicos que ingressam nesses cargos mediante prévia aprovação em concurso público de provas e títulos) – a constituir uma carreira jurídica específica dentre os advogados.

Ressalte-se, demais disso, que sucessivas emendas à constituição vêm, na linha do que preconizado pelo constituinte originário, fortalecendo o papel fundamental das Defensorias Públicas, para assegurar-lhes autonomia (EC n° 45/2004, EC n° 74/2013) e formatá-las como instrumento democrático de efetivação dos direitos humanos (EC n° 80/2014). Por isso que a atual redação do Art. 134 da Constituição Federal estabelece expressamente que “A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”.

Para além de revelar o total descompromisso com o fortalecimento e a estruturação da Defensoria Pública da União, ainda tão carente de estrutura capaz de atender às necessárias demandas em todo o país – e que a autonomia administrativa, financeira e de elaboração de sua proposta orçamentária é caminho aberto para o seu alcance –  a ADI n° 5296 demonstra simbolicamente a visão negativa que o Poder Executivo Federal possui em relação ao papel da Defensorias Pública como instituição. O que é extremamente lamentável, sob todos os aspectos.

Enquanto a Defensoria Pública como instituição não for efetivamente prestigiada e valorizada, não se poderá sequer pensar em igualdade real e justiça material.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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