Passam-se ciclos de violência social no Brasil, demarcados pelos confrontos nas favelas, disputas por pontos de drogas em anexo às demais desordens, parece entrarmos na que caracteriza a guerra civil: constituída da agressão banal ou aparentemente sem justificativas por parte de um grupo de pessoas direcionado àqueles que gostariam de adquirir a cidadania. Tais ocorrências explicitam-se através da absurda idéia de termos de presenciar ocorridos como os da última semana, nos quais alguns homens armados, mascarados, atacaram mendigos nas ruas de São Paulo, matando 6 e deixando outros 10 em estado precário em pronto-socorros. É estupefato observar como a reação, por assim dizer em cadeia da perversidade humana, reproduz-se sem dificuldade, desembocando em outras cidades do país, como na última terça-feira, na cidade de Recife, cuja selvageria vitima mais duas pessoas, deixando quatro em estado de risco.
Parece filosófico questionar o que se passa quando esse tipo de preconceito se lança para exterminar seres humanos, sem nenhuma condição de vida, como se fossem pragas tão nocivas quanto ratos de esgotos, que tornam inóspitas as grandes cidades. Chegamos ao ponto de etimologicamente, no Brasil, codinominarmos miseráveis na totalidade de “moradores de rua”. Que hipocrisia! Moradores de rua. A designação torna mais suave a condição subumana na qual vivem milhões de pessoas no país, para sermos mais precisos 40 milhões, que dependem da vontade alheia para manter os níveis de indigência que lhes são direcionados. Será que ao invés de cumprirmos o nosso papel social, estabelecendo critérios que façam vigorar a concreta, palpável, verdadeira cidadania, necessitemos de exterminadores de realidades, propensos a aniquilar gente simples, limpadores de pára-brisas, vendedores de balas, malabaristas, catadores de papel para tentarmos sonhar com um Brasil utopicamente melhor? Ora, ora, somos vários Brasis dentro de um só espaço, onde poucos podem edificar perspectivas e milhões não podem se quer traçar as irrisórias e irrealizáveis metas. É desse mal-estar, de fazemos de conta que a situação não é tão negativa como parece, que presenciamos a passividade, cômoda e sadicamente inocente, da elite, que não suporta e quase regurgita ao ver pessoas maltrapilhas, sujas e com andrajos, pedindo parte da refeição e sobremesa francesas nos restaurantes elegantes para tentar manter-se em pé.
Entretanto, essa realidade embrulha o estômago e, portanto, resta um posicionamento que se faz mais ou menos assim: no primeiro dia estava em casa, chegam duas pessoas, levam meu amigo que era um judeu. Eu? Nem liguei, não era judeu; no segundo, levam meu outro amigo que era comunista. Eu? Risos… nem liguei, não era comunista; no terceiro, foi-se meu outro amigo católico. De novo continuei tranqüilo, pois também não era católico; no quarto, levaram-me. Infelizmente, já não havia mais ninguém para reclamar. É com esse tipo de tipo de postura egocêntrica e de arrogância que detectamos as nossas falhas no que concerne aos critérios de nossa responsabilidade em fazer valer não somente a nossa cidadania, mas de outros que permeiam o mesmo espaço em que habitamos.
Consequentemente, por um medo descomunal e como subterfúgios para instaurar a limpeza das ruas e das belas cidades, eclode o vingador, arrebatando a escória, o lixo, o resto, que classifica o submundo, contrapondo-se à imagem que queremos, ilusoriamente, para o país.
Esta inópia alcança os mais elevados índices de inaceitabilidade. No entanto, soluções hábeis não surgem, deixando à deriva insanos que pensam estar fazendo uma benesse à sociedade com a formação das gangues organizadas. Gangues organizadas? Que ironia! Organizam-se gangues, desorganizam-se as polícias, que, infelizmente, por motivos mil, só tentam fazer a justiça do pós-fato, do pós-extermínio, da pós-morte, esquecendo-se, todas elas, o que é justiça preventiva para os pobres, enquanto a elite cria os próprios mecanismos para defender-se não só da agressão, dedução dessa desigualdade, como também da possibilidade de enxergar um mundo que não seja o perfeito: o que vemos é matrix, a realidade é melhor. Assim, para encontrá-la, atropelemos qualquer objetivo que se antagonize ao nosso estigma de beleza. Não, não. A realidade é essa. E com a mesma conviveremos para que fatos como o assassinato do índio Galdino Pataxó, ocorrido em Brasília, praticado por filhos da confusa classe média, que sonha em ser rica, mas não vislumbra o passado para não lembrar que um dia foi pobre, não sejam aceitos como comuns no intuito de, erroneamente, começarmos a entender que os deficientes sociais não são recicláveis. Por todos os conflitos, que denunciam a nossa inoperância, não podem ser esquecidos os gritos que ecoam do massacre das crianças na Candelária, Rio de Janeiro, do sofrimento, injustiça e morticínio vividos pelos sem-terra em Eldorado do Carajás, todos calados por contrariar o sistema pelo simples fato de existirem destoantes da perfeição. Comprova-se, vergonhosamente, a tese dos descartáveis: joga fora no lixo, joga fora no lixo, joga fora no lixo…
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