Deus ensangüentado – o novo livro de Santo Souza

Deus Ensangüentado
Wagner Ribeiro, poeta consagrado nos últimos anos, em Sergipe e noutros lugares, pelos belos poemas que publicou, renovando a vida literária local, compara Santo Souza aos mestres das artes universais, ao dizer que o livro novo do bruxo de Riachuelo é um autêntico Santo Souza. É, e mais poderia ser, pois como o vinho, o poeta tanto mais velho quanto fica melhor, na alquimia de suas leituras e escrituras exemplares, nas quais símbolos e valores perdem seus códigos geográficos, validade histórica e são, pelo poder da linguagem, universalizados. Deus Ensangüentado repassa, aos olhos do leitor, todo um mundo recriado na atemporalidade entranhada na obra santosouseana, cujos títulos se mantém fiéis aos horizontes míticos e místicos do autor.

Surpreende aos menos avisados, talvez, que haja em Sergipe alguém com tal arsenal poético, de universo vocabular singularíssimo, capaz de reescrever, sob a ótica da aventura humana, as lutas incansáveis do ser que perdeu, nas trevas do passado, a imortalidade, cedeu sua infinitude à fatalidade biológica, e resmunga e esbraveja diante do tropel do tempo, girando compassadamente, o pedaço que ocupamos com nossa própria história. É a história que nos mantém únicos, como sobreviventes do desconhecido, mesmo quando falares e crenças distinguem os herdeiros da rotina diária, atrelada pela gravidade, a um centro que não conhecemos.

O poeta, em sua biblioteca / Foto: Wagner Ribeiro 
É próprio da literatura ordenar o caos, reinventar a realidade, como é da arte e do artista assumir poderes retirados da sobrenatureza, para contar, com suas prosas e seus versos, a saga humana, mesmo quando escorrem pelos olhos fixos no tempo as lágrimas das incertezas, que emocionam os poetas e outros criadores de beleza. A poesia acaricia o medo, ilumina as esperanças, sendo, como o é, um pedaço de sensibilidade destinada a aplacar as desilusões. Goethe teria dito: “se a tua dor te incomoda, faze dela um poema.”

Santo Souza navega com seu saveiro existencial, velas brancas pelas águas escuras do rio Sergipe, desde 17 de janeiro de 1919. Tem 89 anos contados, anda beirando os 90, mas na arte da poesia tem o fôlego dos jovens que se tornam gigantes, empunhando armas que são da sua resistência, para sonhar com “deus plantando flores, caminhar com um cometa na mão, como se fosse uma lanterna iluminando o abismo, para ver nele a horrenda partitura da música total. A vida e a morte aqui se abraçam, rindo.”

 Assim como Camões povoou de mareantes sua epopéia, tomando a ação real como fonte, ao contrário das epopéias de feitos imaginários, que serviram de acalanto ao mundo velho, Santo Souza deu à poesia de língua portuguesa um sotaque universal, como uma partitura de sons ajeitados pelo sentimento, que pela dor e sofrimento une, com ânsia e esperança, na mesma trajetória, multidões de vítimas. Quando o dia perde a luz possante e a noite avança, cega, na sua rotação, o céu se mostra enfeitado de luzes fragmentadas. A paisagem de estrelas, astros e firmamento, cobrindo nosso cansaço, acolhe nossa fraqueza, e, por mais que pareça real aos nossos olhos, é uma fantasia ilusória, vinda dos tempos distantes, velozes em seu itinerário. A poesia de Santo Souza tem dois hemisférios: é aquilo que se ouve e lê, na concretitude das palavras, mas é, também, um grito angustiante que tem ecoado, nas dobras do tempo, como o último recurso de uma consciência adquirida. A vida e a morte balizando os dias e as noites da existência humana, e o poeta com seus versos buscando reconciliar-se, em nome dos seus. Deus e sangue são símbolos que atuam na aproximação do divino e do humano, como sabe o poeta riachuelense e o demonstra em toda a sua obra vasta e bela.

A presença intelectual de Santo Souza em Sergipe representa uma síntese cultural que tem marcado a história e a vida desta pequena parte do Brasil. Grande entre os grandes, o maior entre os poetas, pedaço vivo da própria fundação social, que viu jorrar seu próprio sangue regando terras, o poeta ergue-se com sua palavra a um tempo mansa e avassaladora, para escrever no registro recorrente da sobrevivência, a epopéia dos insubmissos, daqueles que fazem das lágrimas um oceano de resistência e indignação, mas sem perda, jamais, da beleza que ornamenta a vida, com um toque sensível e incidental que dá a cada um a sua própria identidade.

Deus Ensangüentado é a identidade dos mortais, enclausurados pela vida, como Santo Souza é o poeta da condição humana.

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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