Deux Généreaux X – Final

Conforme dito anteriormente, na grande vitória das eleições legislativas de 23 de junho de 1968, apesar de sua ação determinante na extinção do furacão rebelde de maio, o grande vencedor não foi De Gaulle, mas a direita francesa que se cansara dos distúrbios estudantis que incendiara a nação e parecia inextinguível sem violências.

 

Temendo novo recrudescimento de agitação e revolta, estes setores mais à direita venceram a eleição (358 das 487 cadeiras), em vitória jamais repetida, liderados agora por Georges Pompidou, o Primeiro Ministro e Giscard D’Estaing, o antigo ministro da economia.

 

Pompidou, com sua leniência em sufocar as manifestações estudantis de maio de 1968, criara uma imagem conciliadora de moderação, enquanto D’Estaing acrescia seu nome fortalecendo a direita francesa com um pensamento mais moderado e sem revanchismos, alistando agora os setores assustados com a possibilidade de uma revolução socialista.

 

Nesta eleição de 23 de junho de 1968 perderam, sobretudo, os setores que apoiaram vivamente os « événements du Mai 1968», bem como os setores mais reacionários de oposição, aí incluídos os saudosistas de Philippe Pétain, que continuavam a batalhar por sua reabilitação póstuma, os inconformados com a descolonização da Argélia, e os responsáveis pelo atentado de Petit-Clamart.

 

Pompidou e D’Estaing¸ os grandes vencedores, liderando o centro majoritário e a direita moderada, procuravam agora se fazer sucessores do velho general que resistia em idade, caindo em prestígio, numa permanência que passava a incomodar os próprios aliados que, a seu modo reacendiam o canto sufocado nas ruas. Enquanto vencedores e já incomodados candidatos ao delfinato, parecia sair daí o eco antigo da « chienlit » na rua: « De Gaulle, ao museu! »

 

O velho general, porém, se sabia acima dos partidos. Seu pensamento, sua maneira de conduzir a nação francesa perseguindo os seus grandes destinos, desde sempre em sua história de cadete a general, nunca fora o de se submeter aos interesses mesquinhos de partidos, com o parlamento sempre lento, resistente e conflituoso, com suas decisões de muitos discursos e pouca produtividade, se exaurindo em debates de temas miúdos e cotidianos.

 

Assim, vendo que os partidos de sua base não lhe concediam as maiorias necessárias às reformas pretendidas, resolve novamente convocar a nação para que plebicitariamente fosse agora reformado o senado, mais resistente às mudanças, transferindo algum poder com a introdução de representantes de organizações profissionais e sindicatos em conselhos regionais.

 

Em princípio as reformas a serem introduzidas tinham o apoio de sua base parlamentar, porém já existia uma guerra de sucessão iniciada. Pompidou que fora substituído por Maurice Couve de Murville como Primeiro Ministro chegara a se ensaiar pela imprensa como candidato a Presidente quando o General De Gaulle desejasse se retirar. Tal declaração suscitou uma resposta do General informando ser seu desejo cumprir todo o mandato de sete anos, previsto para encerrar em 1973.

 

O assassinato do motorista do ator Alain Delon gerou fofocas com o envolvimento de Claude, a esposa do Ex-Primeiro Ministro Pompidou. 

Por outro lado Pompidou ficara magoado porque sendo vítima de uma campanha difamatória, não contara a tempo com o respaldo do General. Tal campanha se dera após o escandaloso assassinato de Stephan Markovic, guarda-costas do ator Alain Delon, bastante conhecido e reputado na alegre companhia de vedetes que fazia os belos dias de Saint-Tropez.

 

Neste escândalo, acusaram os Pompidou por terem também uma casa em Saint-Tropez, bastante visitada pelos artistas, aventando-se um envolvimento sensual de Claude, a esposa do Ex – Primeiro Ministro, com o assassinado Markovic, num prato delicioso para a imprensa escandalosa.

 

Hoje, embora o fato não tenha sido de todo elucidado, sabe-se que a campanha fora intencionada para, de um caso fortuito, agravar a vida política do Ex – Primeiro Ministro, então em ascensão. Sabe-se, entre muitas intrigas, que Pompidou ficara ressentido com De Gaulle, porque este demorou a recebê-lo e a solidarizar-se com ele frente ao noticiário.

 

Sabe-se também que nesta entrevista tardia Pompidou dissera a De Gaulle « Meu general, você sabe por que eu pedi para lhe ver: Eu conheço a minha mulher para saber que é impensável ela estar misturada, por menor que seja a este caso. Procuram-me dar um golpe. Eu não direi tanto de todos os seus ministros,.. porém, não contei com qualquer apoio nem na Praça Vendôme com o Sr. Capitant, nem no Matignon, com o Sr. Couve de Murville, nem no Elizeu. Em nenhum lugar houve a menor reação de apoio a um homem de honra. »

 

Mas, mesmo após a entrevista, Pompidou afirmara que De Gaulle não lhe pareceu de todo satisfeito. Havia muitas conversas e opiniões, e o affair Markovic resultaria numa conseqüência durável ; uma ruptura entre os dois.

 

Quando o noticiário extinguiu o escândalo, a candidatura Pompidou já estava colocada, explicitamente inclusive, com uma sua declaração acintosa e incomodativa, como a requerer a antecipação dos fatos.

 

« Para suceder o General De Gaulle, » disse o Ex – Primeiro Ministro, « é preciso duas condições : que ele tenha deixado à presidência e que seu sucessor venha a ser eleito. Isso, eu creio, não é mistério para ninguém, que eu serei candidato à Presidência da República quando houver uma eleição. “Mas, eu não estou absolutamente com pressa.”

Pompidou parecia dizer: « Quando o General partir, serei candidato ». Uma declaração que, se não apressava a saída do General, delimitava e cobrava a sua partida antecipada do Palácio Elizeu como titular da Presidência da República Francesa.

Visita do Presidente Ricard Nixon a De Gaulle numa das últimas fotografias do General ainda Presidente da França. Vê-se ao funfo o Secretário de Estado Henry Kissinger.

 

Tal declaração incomodou o General que se sentiu no dever de respondê-la : « Para o cumprimento da missão nacional que o povo francês me incumbiu, eu fui reeleito a 19 de dezembro de 1965 por sete anos Presidente da República. Devo dizer que a menos me venha faltar, seja a vida, a força, a confiança direta do país, eu cumprirei este mandato até seu termo. »

 

Isso equivalia dizer que só haveria eleição de Presidente da República em 1972.

 

Mas o tempo diria que o setenato não seria cumprido, embora não fosse um tempo de guerra e de ameaças, e a circunstância não fosse desafiante nem perigosa.

 

Na verdade, vivia-se um período de paz, tranqüilidade e pleno exercício de liberdade e as nações já não necessitavam de lideranças fortes que as protegessem diante do inimigo. Um cenário mundial em que já não mais viviam nem o russo Stalin, nem o inglês Churchill, e só restava o americano Eisenhower, dos grandes líderes da 2ª Grande Guerra, mesmo assim já agonizante no leito de um hospital.

 

E assim o General mudaria de idéia e iria embora mais cedo, não por um golpe ou por uma quebra das instituições, mas por uma decisão de sua própria vontade.

 

Conforme dito anteriormente, a última grande vitória eleitoral não trouxera consigo o apoio parlamentar que o General necessitava para as suas grandes reformas.

 

Aliás, sempre fora assim desde a 4e République e continuava também na 5e République. Mesmo conquistando maiorias eleitorais expressivas, o General se via apeado e quase refém dos políticos e dos partidos.

 

Para prevalecer sua vontade, enquanto real detentor da confiança popular, o General acostumara-se a consultar a nação mediante referendos sob questões que lhe pareciam cruciais e acima dos partidos.

 

Assim diversos referendos foram realizados. O primeiro por conta da criação da 5e République em 28 de setembro de 1958, o segundo, em 8 de janeiro de 1961, quando da autodeterminação da Argélia, o terceiro em 8 de abril de 1962, quando da apreciação dos acordos trabalhistas de Évian, o quarto em 28 de outubro de 1962, quando instituiu as eleições diretas para a Presidência da República em mandato de sete anos, e um quinto e último que se realizaria em 27 de abril de 1969 com a finalidade de reformar o Senado.

 

É neste último referendo que De Gaulle, ao ser derrotado renuncia à Presidência da República.

 

Esta sua renúncia merece ser destacada pelo inusitado como se deu, afinal ainda tinha um mandato de Chefe de Estado a cumprir, e não havia qualquer movimento popular ou partidário que desejasse apeá-lo do poder.

 

Ora, o General porque muito ciente da sua missão, resolve transformar este quinto referendo, o da reforma do Senado, como sendo uma espécie de um seu recall político.

 

Entende-se por recall político, o dispositivo legal norte americano em que é possível, mediante consulta popular, cassar e revogar o mandato de qualquer representante político. Este recall serve como um chamado de volta para “reavaliação” popular, não só dos mandatários reconhecidamente corruptos, mas dos incompetentes ou inoperantes.

 

Não era o caso em questão, e nem existia na França este mecanismo de recall, porém não interessava a De Gaulle permanecer no poder sem o aval majoritário dos franceses.

 

Assim, em discurso pronunciado pelo rádio e televisão realçando pela última vez a alma e o patriotismo francês, volta o Presidente De Gaulle a conclamar as urnas. E depois, numa entrevista radiofônica, sem ninguém lhe pedir ou provocar, o herói envelhecido condiciona a sua presença no comando da nação à aprovação do referendum.

 

Na sua cabeça de soldado não valeria a pena permanecer Presidente, sentindo-se tolhido por políticos e partidos, que em nome da democracia, ali estavam para negociar cargos e benesses.

Na verdade esta resposta, insensata em termos de política e pragmatismo era um reflexo do desprezo manifestado por aliados que se bandeavam contra o seu governo.

 

Ele fora sabedor deste mau proceder de aliados, por exemplo, quando numa reunião da UDR, o partido gaullista dirigido por Pompidou, o Deputado Hébert, parecendo um audaz oposicionista da « chienlit », se rebela dizendo que iria votar contra o General por não poder seguir « esse velho, sua senilidade, esse homem que não está na posse de seus meios ».

 

Segundo palavras de Max Gallo em « De Gaulle, La statue du commandeur » , o General soubera de tudo e se decepcionara com Pompidou que, longe de coibir a disciplina e repreender o rebelde, se limitara a admoestar : « Nós temos obrigação de obedecer aos chefes, mesmo quando parecem envelhecidos, cansados, mesmo se não compreendemos seus objetivos, mesmo se parecem criticáveis, enfim, é uma questão de fidelidade e disciplina ».

 

Era a política de panos quente do Ex – Primeiro Ministro que preservava seu nome como moderado e conciliador, posando de uma fidelidade constrangida e afiançando uma decadência não verdadeira do general.

 

Mas, a fidelidade e a disciplina não podem resistir à leniência e às concessões irrestritas. A palavra de Pompidou mais parecendo um clamado de desculpa que uma posição de líder, reafirmava seu apoio incomodado e a contragosto ao General ; um convite velado à rebeldia.

 

Assim na entrevista de 10 de abril de 1969 ao jornalista Michel Droit, o General dissera, num arroubo de desapreço ao cargo todo incomum a todos os políticos : « Da resposta que dará o país ao que lhe peço vai depender, evidentemente, seja a continuação do meu mandato, seja imediatamente a minha partida. »

 

A resposta inesperada e inusitada era um abrir o peito à punhalada inimiga e aliada. Era uma resposta aos adversários como François Mitterrand que o acusava de ditador, sempre se perpetuando no poder por meio de referendos. Era, porém e sobretudo, um convite velado aos aliados para a defecção, afinal tal resposta desafio serviria como senha : ‘É preciso derrotar o General para baní-lo da presidência.’

 

Assim o aliado Giscard D’Estaing e seu partido optaram pelo Não, e o ex – Primeiro Ministro Georges Pompidou, lavando as mãos na eleição, quase explicitamente, demonstrou seu apoio também ao Não.

 

O historiador Hugues Porttelli, em seu livro La Ve République assim analisa o resultado daquele referendo: « enfraquecido no seu campo pela dissidência giscardiana e pela sombra de Georges Pompidou, desprovido de adversário do qual se pudesse fazer um espantalho, o General De Gaulle parte vencido para a batalha, ao ponto que alguns chamarão de ‘suicídio político’.”.

 

E o resultado do referendum de 27 de abril de 1969 sobre a reforma das regiões e do Senado não se fez diferente. Com a ajuda dos partidos governistas, a oposição derrotou De Gaulle com o « Non » vencendo o « Oui » por 52,41% a 47,59% dos votos válidos.

 

Uma vez conhecidos os primeiros resultados, confirmando a derrota anunciada pelas pesquisas, o General despede-se de seus ministros por meio de ofício atencioso e agradecido enfeixando com a decisão sucinta e irretorquível, anunciada às 0 :10 Horas da madrugada de 28 de abril de 1969, quando ainda não acabara a apuração : « O General De Gaulle comunica : ‘Eu cesso de exercer as minhas funções de Presidente da República. Esta decisão toma efeito a partir de hoje ao meio dia.’ ».

 

Doze horas menos dez minutos será o tempo necessário para desocupar o palácio Elizeu e partir para a sua residência em Colombey-les-Deux-Églises.

 

Narrando tal fato prossegue Portelli : « Imediatamente conhecido os resultados, o General se demite da presidência, sua demissão tomando efeito no dia 28 de abril às 12 horas. Se retirando para Colombey-les-Deux-Églises, ele se manterá totalmente afastado de todas as peripécias políticas, viajando à Irlanda, depois à Espanha e sobretudo redigindo suas ‘Mémoires d’espoir’ das quais só o primeiro volume (1958-1962, ‘Le Renouveau’) será concluído ».

 

E continua o autor de La Ve République, agora dando seu entendimento com isenção, afastado do tempo e das paixões : « Seu prestígio é reforçado pelas circunstâncias de sua partida, sua demissão após a derrota referendária tendo-lhe feito justiça de todas as acusações de poder pessoal – sua demissão não é uma lição de democracia ? –como de conservadorismo – não foi a direita que o abandonou em 27 de abril ?

 

Quanto aos adversários de De Gaulle, e a esquerda em particular, só conseguiram lograr vitória doze anos depois ; em maio de 1981, apos os mandatos presidenciais de Georges Pompidou e Giscard d’Estaing, quando o socialista François Mitterrand se elegeu Presidente da República.

 

Era, porém, um novo tempo. Um tempo em que vigia o eurocomunismo, os socialistas adotaram práticas sociais democráticas, o leste europeu e o muro de Berlim começavam a ruir, e a esquerda não mais exibia o mesmo radicalismo que tanto exarcebava De Gaulle.

 

O próprio François Mitterrand, se contemplando em final de mandato após quatorze anos de poder, lembrava que em toda história da série de repúblicas francesas nenhum homem governara tanto a França por tanto tempo quanto ele. Justamente Mitterrand, o grande crítico de De Gaulle, o que mais acintosamente acusara o General de se perpetuar no poder, fora mais tempo Presidente dos franceses. Um presidente de menor glória, é verdade, tanto que após sua queda os socialistas só colheram derrotas, perdendo para Jacques Chirac (1995-2007) e Nicolas Sarkozy cujo mandato deverá encerrar em 2013, com direito a reeleição.

 

O curioso é que esta análise de Mitterrand, era também um auto-elogio, afinal permanecer no Elizeu é também uma maneira de saber conviver e transigir, e também um apego contraído por todos que ali assumem o poder. O próprio Mitterrand nunca mudaria a legislação e a constituição da Ve République, uma prova de que a 5ª República era benéfica para a estabilidade da nação.

 

E mais, só para consignar o caráter de De Gaulle, frente a Mitterrand, o seu maior crítico. Nos quatorze anos em que o socialista foi Presidente da República, o seu governo foi derrotado nas urnas e teve que « coabitar » o poder com a oposição por duas vezes. Um fato nunca acontecido com De Gaulle.

 

Entende-se por « coabitação » este mecanismo único republicano que, inventado e implantado por De Gaulle em sua Ve République, permite aos partidos oposicionistas, quando majoritários no parlamento, fazerem o ministério a contragosto do Presidente da República.

 

Ora, aí está também a diferença entre o soldado e o político : Mitterrand governou durante 14 anos sendo forçado a trocar de ministério sete vezes, inclusive tendo que coabitar com a oposição durante vários anos, vivendo às turras, entre socos e pontapés com os oposicionistas Jacques Chirac e François Balladour como Primeiros Ministros, coisa que nunca aconteceu com De Gaulle. Ou seja, nenhuma derrota fizera Mitterrand renunciar o poder e a presidência.

 

Mas, De Gaulle não era um político. Ele era o homem necessário para as grandes decisões, o herói combatente para liderar a nação, quando a maioria envereda na desordem e se submete ao inimigo destruidor. Ele não era o homem para o dia-a-dia que julgava mesquinho e sem grandeza, tempos dos grandes conchavos e das reuniões promíscuas, agora presentes no jogo democrático, onde os jogadores fingem muito, fazem barulho em demasia, e raro é o proceder ético e a luta pelo bem comum.

 

Assim, o tempo não era mais de perigos e ameaças. As espadas dos condestáveis e os escudos dos combatentes defensores não eram mais necessários, e já podiam perder o fio e a resistência. Valia agora a eloqüência das palavras soltas ao vento e o momento era de esquecimento do passado, onde os mortos deviam enterrar os seus mortos. E assim De Gaulle chega ao fim num aneurisma súbito em sua biblioteca residencial.

 

No seu final, afirma Hugues Porttelli por constatação: « Sua morte, a 9 de novembro de 1970, será a ocasião de uma última manifestação de fidelidade popular. A 12 de novembro, quando suas exéquias se desenrolam numa simplicidade cavalheiresca em Colombey (a família e os ‘Compagnons de la Libération’ são os únicos a participar da cerimônia religiosa, uma multidão de fiéis vindo saudá-lo) centenas de milhares de parisienses depositaram no Arco do Triunfo as flores do adeus ».

 

As exéquias do General obedeceram ao rito que ele estabelecera em 16 de janeiro de 1952: “Eu quero que minhas exéquias tenham lugar em Colombey-les-Deux-Églises. Se eu morrer em algum lugar, será preciso transportar meu corpo a minha casa, sem a menor cerimônia pública. Meu túmulo será aquele em que repousa minha filha Anne e onde um dia repousará minha mulher. Inscrição: ‘Charles De Gaulle 1890-…’ Nenhuma outra. A cerimônia será dirigida por meu filho, minha filha, meu genro, minha nora, ajudados por meus auxiliares, de tal modo que ela seja extremamente simples. Eu não quero exéquias nacionais. Nem presidente, nem ministros, nem membros de assembléias, nem corpos constituídos. Só os exércitos franceses poderão participar, como tais. Mas sua participação deverá ser modesta, sem músicas,, nem fanfarras, nem sons. Nenhum discurso deverá ser pronunciado, nem na igreja, nem em qualquer lugar. Nenhuma oração fúnebre no parlamento. Nenhum local reservado durante a cerimônia, senão à minha família, aos meus Companheiros membros da Ordem da Libertação, do Conselho Municipal de Colombey. Os homens e mulheres da França e de outros países do mundo poderão se o desejarem, fazer em minha memória a honra de acompanhar o meu corpo até à sua última morada. Mas é em silêncio que eu desejo que ele seja conduzido. Eu desejo recusar de antemão toda distinção, promoção, dignidade, citação, condecoração, quer ela seja francesa ou estrangeira. Se qualquer me seja decretada, isso será uma violação das minhas últimas vontades.

 

Nesta sua despedida, previamente planejada dezoito anos antes, parecia repetir o que dissera na sua primeira renúncia à Presidência da República, quando largara o Palácio Elizeu em silêncio: “Só o silêncio é grande, o resto é fraqueza. É preciso ser pitoresco nos atos. Partindo sem me voltar, eu carrego comigo o meu mistério”.

 

Citado por Max Gallo, o escritor André Malraux escreverá em Les chênes qu’on abat: “No dia seguinte, no dia cinza dos funerais, eu me apresso sob o dobre de finados de Colombey ao qual responde o de todas as igrejas da França e, na minha lembrança todos os campanários da Libertação… Em Colombey, na pequena igreja sem passado, haverá a paróquia, a família, à Ordem: os funerais dos cavaleiros. ‘A rádio nos diz que em Paris, nos Champs-Elysées que ele percorreu outrora, uma multidão silenciosa começa a subir, para levar ao Arco do Triunfo as margaridas molhadas pela chuva que a França não tinha mais trazido após a morte de Victor Hugo’. Aqui, na multidão, atrás dos fuzileiros navais que apresentam armas, uma camponesa com chalé negro, como aquela dos nossos maquis de Corrèze, urra: ‘Por que não me deixam passar? Ele disse todo mundo! ’ Eu ponho a mão sobre o ombro do marinheiro. – Você devia deixá-la passar, isso faria prazer ao General; ela fala como a França. Ele se vira sem uma palavra e, sem que seus braços se mexam, parece apresentar as armas à França miserável e fiel, e a mulher se apressa claudicante em direção à igreja, diante do barulho do carro que passa.”.

 

Se no pensar de Boissieu “A ingratidão dos povos é a consagração definitiva dos homens que dominaram os grandes acontecimentos e já pertencem à História”, a imprensa francesa não negou a De Gaulle o respeito à passagem de seu cadáver. Em dissonância, apenas o folhetim satírico Hara-Kiri ousou um título provocador bastante condenado: « Bala trágica em Colombey, um morto.  »

 

Assim, eis no túmulo, dois generais, dois heróis, duas personalidades distintas e marcantes: Philippe Pétain e Charles De Gaulle.

 

Escrevendo sobre o retraçar da história e discorrendo sobre a verdade e a política, a judia alemã Hannah Arendt num tempo em que ainda não havia as ferramentas computacionais do Printshop, do Ctrl-c e do Ctrl-v, clamava sobre o perigo inerente a todos pelo falsear da verdade a serviço do poder.

 

No caso citado por Arendt, as retiradas sistemáticas da figura de Trotski nas fotos, documentos e livros da história da Rússia Soviética pelo governo Stalin, procedidas sem denúncia nem constatação de falsificação, era um prenúncio do assassínio puro e simples constatado. Em sua conveniência os detentores do poder usam da violência e da falsificação para apagar os homens e a história desses homens, num prenúncio para lhes tirar até a própria vida.

 

Teria acontecido com Pétain, ainda hoje mantido como desertor e com o nome citado marginalmente, mesmo quando das comemorações dos noventa anos da batalha de Verdun ?

 

Estará acontecendo também com De Gaulle, nestes tempos em que a França é apenas uma das nações dos Estados Unidos da Europa?

 

Concretamente, os países que viveram como a França, ameaçados em guerras, vendo periodicamente sua juventude perecer no campo de batalha, não podem ser comparados com os que passam em sua história sem traumas nem glórias.

 

Do herói, dirá Bertolt Brecht: “Infeliz a nação que precisa de heróis.” Dirá também sem falar de heróis: “Há homens que lutam um dia, e são bons; há homens que lutam por um ano, e são melhores; há homens que lutam por vários anos, e são muito bons; há outros que lutam durante toda a vida, esses são imprescindíveis”.

 

Do amor à causa abraçada, muito além da própria vida, dissera antes Charles de Péguy, militante católico, socialista et dreyfusard, que morreu na infantaria combatendo sob Pétain e quase ao lado de De Gaulle:

 

« Heureux ceux qui sont morts pour la terre charnelle, Mais pourvu que ce fût dans une juste guerre. […]

Heureux ceux qui sont morts dans les grandes batailles, Couchés dessus le sol à la face de Dieu […]

Heureux les épis murs et les blés moissonnés ».

 

Que numa tradução de brilho fosco pode ser assim bem entendida: “Felizes os que morreram pela terra carnal, Contanto que isso fosse numa guerra justa, […] Felizes aqueles que morreram nas grandes batalhas, Adormecidos sobre a terra e à fronte de Deus […] Felizes as espigas maduras e os trigos colhidos”.

Túmulos do General Charles De Gaulle (à esquerda), no cemitério de Colombey-les-Deux-Églises, e do Marechal Philippe Pétain no cemitério da ilha de Yeu. 

 

Como espigas maduras e trigos colhidos repousam adormecidos no solo francês Philippe Pétain e Charles De Gaulle, em túmulos discretos.

 

Não há panteão nem homenagens para Pétain, nem poderia existir. Ainda hoje prevalece sua fama de colaboracionista em capachismo perante Hitler.

 

Mas, se foram tantos assim, porque só condenar o « Marechal vaidoso e senil »? 

 

Não Estaria o “herói de Verdun” exercendo a melhor política para a preservação da França invadida? Perguntam os seus defensores ecoando as palavras de seu advogado Jacques Isorni.

 

Há quem assim pense e lhe enfeite o túmulo com flores todo ano. É uma minoria que, abrigada na direita radical, persegue a reabilitação póstuma do velho Marechal.

 

Quanto ao General De Gaulle, também não há panteão em sua homenagem. Se houvesse, ouvir-se-ia um tonitruante protesto em sua cova simples, no cemitério de Colombey-les-Deux-Églises.

 

Panteão só o de Napoleão Bonaparte nos Invalides, junto com os generais de todas as guerras francesas ao seu redor.

 

No mais, a França permanece com os seus cozinheiros, seus costureiros, suas dançarinas de cabaré, seus poetas e romancistas, suas extensas variedades de queijo, parecendo tudo esquecer, em copas de bom vinho, não só as lutas fratricidas pelas idéias e crenças, como o sangue generoso fartamente espalhado por gerações intermináveis em todo o tempo de sua história.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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