Diálogos Impertinentes

Não há dúvida: o fato político-institucional da semana foi a denúncia, efetuada pela revista “Veja”, de uma gravação clandestina e ilegal, efetuada sem autorização judicial, de conversa por telefone entre o Senador Demóstenes Torres e o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes. O grampo teria sido efetuado por servidores da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).

 

As reações foram contundentes e imediatas, como não poderia ser diferente. O Presidente do STF cancelou viagem que faria à Coréia do Sul, onde participaria de encontro de Presidentes de Cortes Constitucionais de vários países. Em rede nacional de televisão, disse que esse fato comprometia o Estado de Direito, aproveitando a oportunidade para afirmar que chamaria o Presidente da República “às falas”.

 

Na segunda-feira (01/09/08), o Presidente da República recebeu no Palácio do Planalto o Presidente e o Vice-Presidente do STF (Ministros Gilmar Mendes e Cezar Peluso) e o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Carlos Ayres Britto, para diálogo institucional, no qual houve a cobrança de providências enérgicas para apuração e punição dos responsáveis pela tamanha ilegalidade. Em seguida, foi anunciado o afastamento provisório de toda a Diretoria da ABIN, bem como a abertura de investigação (pela Polícia Federal e pela própria ABIN) voltada para a apuração enérgica do episódio.

 

A denúncia é mesmo muito grave, e revela um estágio de evidente exagero, tanto na utilização do instrumento da interceptação telefônica como meio de investigação criminal no Brasil, ainda que por ordem judicial, como na ilícita escuta e gravação clandestina de conversas telefônicas. No Brasil de hoje, quem pode afirmar com segurança que não tem as suas comunicações telefônicas privadas bisbilhotadas por terceiros, ainda que não esteja sendo investigado criminalmente?[1] [2]

 

Contudo, quero chamar a atenção para outro dado. Por enquanto, a denúncia efetuada pela revista Veja ainda carece de comprovação, ao menos quanto à autoria da gravação ilegal (afinal, ela pode ter partido de agentes da ABIN, como diz a revista, mas pode também ter sido efetuada por outras pessoas). Não se tem certeza, de igual modo, quanto ao objeto do “grampo” ilegal: o telefone do gabinete do Ministro Gilmar Mendes, o seu aparelho de telefone celular, o telefone do gabinete do Senador Demóstenes Torres, ou seu aparelho de telefone celular, ou ainda a Central de Telefonia do Senado Federal?

 

A única certeza é de que os diálogos divulgados são verídicos, realmente ocorreram, por meio de comunicação telefônica, eis que os interlocutores reconhecem a veracidade do diálogo tal como publicado, bem como a data em que teria ocorrido.

 

E o que esse diálogo revela? A meu ver, revela algo igualmente grave, mas que não gerou repercussão. Revela que um Senador da República, após externar preocupação com o que entende ser uma indevida interferência de um juiz de direito nos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito de que é Relator, anuncia intenção de, caso não consiga resolver o problema, propor a competente ação judicial para que o Presidente do STF “restabeleça o direito”.

 

Podemos conferir:

 

Demóstenes Torres: Gilmar, obrigado pelo retorno, eu te liguei porque tem um caso aqui que vou precisar de você. É o seguinte: eu sou o relator da CPI da Pedofilia aqui no Senado e acabo de ser comunicado pelo pessoal do Ministério da Justiça que um juiz estadual de Roraima mandou uma decisão dele para o programa de proteção de vítimas ameaçadas para que uma pessoa protegida não seja ouvida pela CPI antes do juiz.

Gilmar Mendes: Como é que é?

Demóstenes Torres: É isso mesmo! Dois promotores entraram com o pedido e o juiz estadual interferiu na agenda da CPI.  Tem cabimento?

Gilmar Mendes: É grave.

Demóstenes Torres: É uma vítima menor que foi molestada por um monte de autoridades de lá e parece que até por um deputado federal. É por isso que nós queremos ouvi-la, mas o juiz lá não tem qualquer noção de competência.

Gilmar Mendes: O que você quer fazer?

Demóstenes Torres: Eu estou pensando em ligar para o procurador-geral de Justiça e ver se ele mostra para os promotores que eles não podem intervir em CPI federal, que aqui só pode chegar ordem do Supremo. Se eles resolverem lá, tudo bem. Se não, vou pedir ao advogado-geral da Casa para preparar alguma medida judicial para você restabelecer o direito.

Gilmar Mendes: Está demais, não é, Demóstenes?[3]

 

 

O diálogo não expõe nenhuma antecipação de posicionamento do Ministro Gilmar Mendes. Contudo, expõe que o Senador Demóstenes anuncia antecipadamente que pretende ir a Juízo, e que tem a convicção de que o Supremo Tribunal Federal deferirá o seu pedido judicial.

 

E é assim que devem ser as relações entre uma das partes de um processo judicial que ainda nem existe e o magistrado que vai participar do eventual julgamento?



[1] Isso não obstante a Constituição garanta a inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas (como elemento essencial da privacidade), excepcionando-a apenas nos termos que a lei estabelecer, por ordem judicial e para fins apenas de investigação criminal ou processo penal (Art. 5º, XI).

[2] Tanto é assim que, outro dia, o Ministro da Justiça, Tarso Genro, admitiu que “Estamos chegando a um ponto em que temos de nos acostumar com o seguinte: falar no telefone com a presunção de que alguém está escutando”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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