Para Maria, toda a Glória

O jornalismo é uma profissão desafiadora. Para nós, mulheres, o jornalismo é ainda mais desafiador, muitas vezes desencoraja, oprime, rejeita. Como uma mulher jornalista, sempre busquei me inspirar em outras mulheres e tê-las como referência em minha profissão tão complexa para quem busca caminhos que rompem o machismo nas redações e assessorias. Antes de passar no vestibular, quando eu pensava em cursar Jornalismo, eu sonhava em ser como Glória Maria, a mulher que viajava o mundo, entrevistava com leveza, sagacidade, deixava as pessoas à vontade, mesmo quando os assuntos eram mais sérios.

 

Glória é uma mulher negra e eu me recuso a referenciá-la com verbos no passado. Pioneira em tantos aspectos, Glória enfrentou situações que somente ela, mulher preta em um mundo tão racista e machista, sabia a dor e como vencer essas barreiras ainda tão estruturadas e alicerçadas em nossa sociedade. Glória sempre soube reverenciar suas raízes e não fazia isso em silêncio, suas atitudes eram nítidas como água. E como água, Glória fluiu, navegou, mostrou-se sólida em suas convicções, soube ser mar, expandiu-se, e é referência não somente para as mulheres jornalistas, mas para tantas outras mulheres, mães, filhas, amigas, de todas as classes, de todas as profissões, porque ela abriu caminhos, mostrou que é possível e que devemos nos orgulhar de todas as nossas possibilidades.

 

Para além disso, como o mar, Glória fluiu, se expandiu tanto, que sua partida da Terra foi justamente no dia em que celebramos a Rainha do Mar, minha Yá Ori, Iemanjá. Em suas entrevistas, essa grande mulher fazia questão de celebrar a vida todos os dias e a sua despedida daqui não poderia ter sido em outra data tão simbólica e cheia de leveza e axé como é o dia de minha rainha. Iemanjá, aquela cujos filhos são peixes, a mãe de todas as cabeças, mulher preta, forte, que com o seu espelho venceu uma guerra e com a sua sabedoria se fez mar. Iemanjá, aquela que habita as profundezas e navega em solitude, a grande feiticeira dos mistérios e segredos, ela que é mãe de todos nós, mãe também de Glória.

 

Assim como Iemanjá e os mistérios de seu mar, Glória, com todos esses feitos, conseguiu ainda, em vida, manter suas relações e pessoalidades na discrição. Esse é outro grande exemplo que ela nos deixa, viver a vida sem justificar ao mundo, mas se resguardar para que o mundo não se sinta no direito de achar que te conhece demais. Diante de todo o respeito, admiração e reverência que Glória merece, o jornalismo, sua profissão, sua paixão em vida, lhe traiu assim que ela partiu, e que jornalismo pequeno é esse que expõe vidas que não mais estão entre nós para se defender.

 

Glória, Gal, Gugu e tantas outras vidas, não gostariam de expor determinados aspectos pessoais e é importante destacar que a vida de qualquer ser humano não é pública, independente da profissão que ocupe. E nisso, o jornalismo doentio, sedento por likes, para atiçar a curiosidade alheia, trai quem lhe ovaciona, quem fez dele uma inspiração para tantas, simplesmente para revelar algo tão pequeno e medíocre como uma idade. Para minhas colegas e meus colegas, não sucumbam a isso, relembrem da ética que a gente aprende, mesmo que o cotidiano nos force a quebrá-la. Sejamos profissionais como e com Glória.

 

Axé!

 

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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