Ditadura e ditabranda I.

No seu editorial de terça-feira 17 de fevereiro passado, a Folha de São Paulo em analogia à palavra ditadura, criou o trocadilho ‘ditabranda’ para explicitar entre outras coisas, que o regime totalitário acontecido no Brasil entre 1964 e 1985 possuíra uma natureza mais moderada frente aos nossos vizinhos e à história passada dos povos.

 

Foi um Deus nos acuda! Pipocaram protestos de todo tipo, dos mais irados aos mais enojados, com direito a manifestação de intelectuais iracundos a prolatar sentenças de castigos como a de se ajoelhar em piçarras em meio a amplo escarro geral e visguento.

 

O cerne da questão fora o editorial da Folha, intitulado “Limites a Chaves”, em que o jornal refletira a preocupação democrática quanto ao resultado do referendo acontecido na Venezuela em 15 de fevereiro, no qual, por uma expressiva maioria de 54,9% dos votos, foi aprovada a autorização para eleições sucessivas dos governantes, e em particular do Presidente da República.

 

Para a Folha, “o rolo compressor do bonapartismo chavista destruiu mais um pilar do sistema de pesos e contrapesos que caracteriza a democracia.” Para o diário paulistano, não basta a pura separação de poderes de Montesquieu, creditada como suprema e ideal para resolver os impasses do império da lei. É preciso que seja pétrea também a cláusula que force a alternância de poder entre os partidos ou facções. E o jornal estava a ver o referendo favorecer a política de Hugo Chaves e seu projeto presidencial de aproximar-se do recorde de mando do ditador Fidel Castro.”.

 

Ora, a consulta popular vencida em 13 de fevereiro fora uma segunda convocação ao eleitorado para rever uma decisão anterior que lhe fora contrária acontecida em dezembro de 2007. Esta nova consulta fora um fato estranho, afinal o eleitorado já tinha se posicionado contrário a reeleição sucessiva. A repetição da consulta, sem uma melhor justificativa, evidenciava que o objetivo era satisfazer Chaves e seu desejo de se perpetuar no poder mediante uma regra permanente, em ousadia idêntica aos contumazes ditadores.

 

E foi neste tom que o editorial lascou: “Mas, se as chamadas ‘ditabrandas’ – caso do Brasil de 1964-1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservaram ou instituíram formas controladas de disputa política e acesso à Justiça -, o novo autoritarismo latino-americano inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente”.

 

E o editorial manifestava sua preocupação ao constatar que já havia uma gradativa submissão do Legislativo e do Judiciário venezuelanos aos desígnios chavistas, fatos resultantes do populismo, advindos do copioso lucro com a venda de petróleo a preços recordes por barril.

 

Mas se o barril de petróleo e o gasto imoderado escorrendo pelo ralo do funil não interessaram nem desfecharam maiores discussões de ordem econômica, financeira, antropológica ou coisas comuns à política, a palavra “ditabranda” gerou mais reação do que a excomunhão do arcebispo pernambucano condenando o aborto e os aborteiros.

 

Se à torto ou à direito da excomunhão do dilema e evitando o aborto do problema, digitarmos a palavra ‘ditabranda’ no site de procura da UOL, por exemplo, encontraremos 354 páginas, no Google, 177.000 só em 0,07segundos, e por aí vai. Um resultado que não imaginei chegasse a tanto.

 

Tentarei fazer um resumo deste debate, por achá-lo interessante, mesmo sabendo que estarei a enfurecer babugens hidrófobas e rabugens macrófagas dos que em intolerância atacam os de mau agrado.

 

A primeira reação ao editorial aconteceu na quarta-feira 19/02, quando o leitor Sérgio Pinheiro Lopes de São Paulo iniciou a lista de protestos: “A partir de que ponto uma ‘ditabranda’, um neologismo detestável e inverídico, vira o que de fato é? Quantos mortos, quantos desaparecidos e quantos expatriados são necessários para uma ‘ditabranda’ ser chamada de ditadura? O que acontece com este jornal? É a ‘novilíngua’? Lamentável, mas profundamente lamentável mesmo, especialmente para quem viveu e enterrou seus mortos naqueles anos de chumbo. É um tapa na cara na história da nação e uma vergonha para este diário”.

 

O jornal, sem arrefecer, respondeu de pronto: “Na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional”.

 

Mas, a coisa não restaria aí.

 

No dia seguinte, 20/02, cinco reações foram publicadas: Na primeira, Maurício Cidade Broggiato de Rio Grande-RS gritou: “Que palhaçada é essa? Quanto de violência é admissível?” Lembrou até Spencer Tracy repreendendo o juiz nazista que condenara um inocente à morte em O Julgamento de Nuremberg, e acrescentou: “A Folha deveria ter vergonha em relativizar a violência”. 

 

Em seguimento, Luiz Serenini Prado de Goiânia-GO ironizou: “Inacreditável. A Redação da Folha inventou um ditadômetro, que mede o grau de violência de um período de exceção. Funciona assim: se o redator foi ou teve vítimas envolvidas, será ditadura; se o contrário, será ditabranda.”

Serenini parecia Aparício Torelli, o Barão de Itararé, a repetir: “Negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados.”

 

Mas o tema não era negociata, nem mamata, muito menos para vezos de risos em ausências de sisos, e assim o Serenini perdendo a serenidade e a ironia concluiu: “Nos dois casos (ditadura e ditabranda) todos nós seremos burros.

 

Para o terceiro missivista, o Capitão-de-mar-e-guerra reformado Paulo Marcos G. Lustoza do Rio de Janeiro-RJ a resposta era dada a Sérgio Pinheiro Lopes: “O neologismo ‘ditabranda’ se referia ao regime militar que não colocou ninguém no ‘paredón’ nem sacrificou com pena de morte intelectuais, artistas e políticos, como fazem as verdadeiras ditaduras. Quando muito, foram exilados e prosperaram no estrangeiro, socorridos por companheiros de esquerda ou por seus próprios méritos. Tivemos uma ditadura à brasileira, com troca de presidentes que não vergaram o uniforme e colocaram terno e gravata, alcançando o país a ser a oitava economia do mundo, onde a violência não existia na rua, ameaçando a todos, indistintamente, como hoje. Só sofreu quem cometeu crimes contra a pessoa humana, por provocação, roubo, sequestros e justiçamento”.

 

E concluiu, hipotético por salvacionista: “O senhor Pinheiros deveria agradecer aos militares e civis que salvaram a nação da outra ditadura que não seria a ‘ditabranda’”.

 

Na continuação, a Professora Maria Vitória de Mesquita Benevides da Faculdade de Educação da USP gritou inflamada: “Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de ‘ditabranda’? Quando se trata de violações de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar ‘importâncias’ e estatísticas”.  

 

E em somação de seu protesto, a professora ousou até deixar o aquém e se entranhou no mais além só para concluir no antanho por não estranho: “Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi ‘doce’ se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala – que horror!”

 

Estaria agora a ‘ditabranda’ estimulando a professora a divagar sobre suas querenças e desavenças com Gilberto Freire que não entrara na briga, nem na rinha e nem no tema, e até com Jorge de Lima que usara em seu poema, “Essa negra Fulô”, um dilema de doçuras e amarguras?

 

Por acaso tais aventuras e travessuras no eito e na escravatura, têm o charme da ditadura, quando por melhor feito, é o lúbrico e o lúdico que fazem a vara ser mais dura e doce, a exibir doçuras de rapaduras, só para rasgar o rasto, ferir o casto e romper o cabaço, para fertilizar toda candura? Não estaria aí no eito e no jeito, uma outra dita dura, a do macho; repelida em brandura e sempre desejada mais que dura?

 

Brandura que não alcançara o coração, o modo de falar e julgar, e o prolatar de sentença do professor e advogado Fábio Konder Comparato, articulista da própria Folha, tido e havido como vero campeão batalhador da tolerância e dos direitos humanos, que se constituiu o último leitor a protestar: “O autor do vergonhoso editorial de 17 de fevereiro, bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana”.

 

Em resposta e estes, a Folha reafirmou que respeitava a opinião dos leitores acima listados que discordavam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro, mas que as publicava.

“Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio às ditaduras de esquerda, como aquela vigente em Cuba, sua ‘indignação’ é obviamente cínica e mentirosa”.

 

As palavras “cínica e mentirosa” foram grifadas por mim, porque isso gerou muito mais ira e discussão, um tema que voltarei em seqüência.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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