Ditadura e ditabranda III.

Hoje, 11 de maio, ao consultar meus últimos textos no blog da infonet, constato uma cobrança feita pelo leitor Saullo, querendo a continuidade do tema Ditadura e ditabranda, que eu prometera prosseguir e deixara incompleto há quatro semanas.

 

Devo dizer, só a título de piada tola, que a intervenção de Saullo me lembrou o trecho de Atos dos apóstolos 9,4: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”

 

Digo piada tola, porque não estou sendo caçado nem acuado. Pelo menos por Saullo. Há outros, porém, que gostariam de me acossar porque lhes incomoda a opinião divergente, e lhes falta bem mais um laivo de seriedade que a incompetência intelectual para o livre debater das idéias.

 

Mas, é preciso voltar ao tema tentando recuperar a discussão perdida, lembrando que as ditaduras, sem exceção, brandas, sanguinárias ou pouco condescendentes, sempre levam o mal a quem lhes pensem diferente.

 

Dizia eu em oito de abril, que só em 24 de fevereiro o editor Fernando de Barros Silva, no artigo “Ditadura, por favor”, se pronunciara contra o editorial ”Ditadura e ditabranda” de 17 daquele mês, dizendo:

 

“O mundo mudou um bocado, mas ‘ditabranda’ é demais… Algumas (ditaduras) matam mais, outras menos, mas toda ditadura é repugnante. Devemos agora contar cadáveres para medir níveis de afabilidade ou criar algum ranking entre regimes bárbaros? Por essa lógica, chega-se a conclusão absurda de que o holocausto nazista não passou de um ‘genolight’ perto do extermínio de 20 milhões promovido por Stálin.”

 

Para Silva, havia uma conclusão discutível porquanto se “o aparelho repressivo brasileiro produziu menos vítimas do que o chileno ou o argentino, isso se deu porque a esquerda armada daqui era menos organizada e foi mais facilmente dizimada, não porque nossos militares tenham sido ‘brandos’”.

 

Seria isso verdadeiro? Seria a nossa esquerda nos idos de 1964, tão incipiente que não despertara as iras e os ódios sedentos de sangue de cruéis militares? Faltavam-lhe ousadias e sobravam-lhe covardias em comparação aos nossos vizinhos? Como aferir a veracidade desta comprovação?

 

“Quando a tortura transforma em política de Estado, como de fato ocorreu após o AI-5, o que se tem é a ‘ditadura escancarada’, para falar como Elio Gaspari. Seria um equívoco de mau gosto associar qualquer tipo de ‘brandura’ até mesmo ao que Gaspari chamou de ‘ditadura envergonhada’, quando o regime, entre 64 e 68, ainda convivia com clarões de liberdade, circunscritos à cultura. Brandos ou duros, o fato é que os regimes autoritários só mobilizam a indignação de grande parte da esquerda quando não vêm acompanhados da retórica igualitarista. Muitos intelectuais se assanham agora com a tirania por etapas que Chávez vai impondo na Venezuela sob a gosma ideológica da revolução bolivariana. Isso para não lembrar o fascínio que o regime moribundo de Fidel Castro ainda exerce sobre figurões e figurinhas da esquerda nativa.”

 

Neste ponto Fernando de Barros e Silva fisgou o figurão Fábio Konder Comparato, que condenou “os autores do neologismo (ditabranda) a ficar ‘de joelhos em praça pública’ para ‘pedir perdão ao povo brasileiro’”.

 

Igual ou parecido à figurinha do Álvaro, que no anonimato e morrendo de medo, joga pedra e sai correndo, querendo condenar à prisão perpétua os seus desafetos, quando melhor seria discutir o tema sem os ódios de todas as nossas misérias.

 

Mas é Silva, quem encerra, respondendo ao figurão e à figurinha: “Que coisa. Era assim, obrigando suas vítimas a ajoelhar em praça pública, submetendo-as à autêntica ‘tortura chinesa’ que a polícia política maoísta punia desvios ideológicos durante a Revolução Cultural. Quem sabe, como a ‘ditabranda’, seja só um palpite infeliz”.

 

O tema voltaria no dia seguinte, no painel do leitor da quarta-feira de cinzas, 25 de fevereiro, indiferente à foto de Luma de Oliveira, 43, rainha da bateria da Portela, belíssima em maiô rosa e tanga azul, que chamava a atenção em foto ocupando só um quarto da primeira página do jornal.

Dois leitores, Cassiano Barbosa de Nova Marabá-PA e Marcos Strachicni de São José do Rio Preto-SP, deixam a Luma e se adensam na bruma da ditabranda.

 

“Até que enfim! Fernando de Barros e Silva quebra o silêncio aparentemente unânime da Folha. A visão panglossiana deste jornal sobre o assunto não ficava bem para quem tem articulista do peso de Elio Gaspari. A dissensão é fundamental para acreditarmos na liberdade de expressão dos jornalistas e, consequentemente que não tenham um limite estreito de suas opiniões”, afirma sensatamente Barbosa, enquanto Strachicni esperneia incomodado: “Não é de hoje que a Folha vem sendo branda em suas opiniões e editoriais. Além do infeliz neologismo, verifica-se que o tradicional espaço da página A2, porta-bandeira da independência do jornal, está recheado quase diariamente de artigos de políticos e ex-políticos, incluindo um senador e um ex-deputado que serviram fielmente à ditadura. O texto ‘Ditadura por favor’ lavou a alma dos sofridos leitores”.

 

Interessante, que na mesma página do jornal, em reflexão do bem pensar de Norberto Bobbio, estava impresso o artigo “Democracia; passado, presente e futuro” da lavra do senador Marco Maciel de Pernambuco, homem ameno e de fino trato, afável na convivência das divergências, que servira a ditadura sem carregar manchas de omissão e comissão.

 

E assim eu lembrei de duas coisas para terminar este texto, uma do Strachicni, porque nunca somos o intolerante, e o castrador é sempre o outro. E a outra advinda do texto de Fernando de Barros Silva, que citado acima, afirmara ser a nossa esquerda em 64, tão incipiente que nunca conseguira suficientemente despertar a crueldade repressiva.

 

Mas, ao ver figuras como a do senador pernambucano me vem à mente um outro dado a inserir no debate. Porque o regime militar de 64 a 85 pode ter sido tudo, uma ditadura envergonhada, escancarada, derrotada ou encurralada, como assim a descrevera Elio Gaspari nos seus quatro livros, que incompletos permanecem. Mas, se não descambou para a violência dos nossos vizinhos a ponto de ser chamada ‘ditabranda’, credite-se a homens como Marco Maciel e tantos outros, que alçados ao poder, puderam moderar os ódios e serenar as intolerâncias.

 

Mas, indiferente às tolerâncias da ditabranda malfadada e da mal fundeada discussão, o debate ainda continuaria por longo tempo.

 

No domingo 1º de março, a folha emitia sua estatística: 116 leitores (20%) discutiram o tema da ditadura, 37 (6,4%) falaram do governo Lula e 31 (5,3%) preferiram a crise econômica, para indiferença do ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva, que preferiu escrever sobre os festejos momescos.

 

O tema, porém, retornaria com Marco Antônio Villa na quinta-feira cinco de março, a reação dos leitores nos dias 6 e nove, os artigos de Marcelo Ridenti e de Luiz Felipe Pondé, no dia 9, e o de Carlos Heitor Cony no dia 20. A esta altura já havia manifestação nas ruas contra a Folha de São Paulo, e o jornal recuou pedindo desculpas pelo termo ditabranda.

 

Mas, para não nos alongarmos no tema, é bom lembrar que brandas ou duras, as ditaduras acontecem rotineiramente na vida dos povos.

 

Hoje, em vigência do Fim da História de Francis Fukuyama crê-se que as democracias liberais são o antídoto por excelência para a contenção das aventuras totalitárias.

 

Será? Pergunta-me um amigo que vê Chávez marchando com suas tropas para reiniciar um novo ciclo de barbárie.

 

Infelizmente, a história continua a repetir os pecados dos homens. E os homens, todos os homens, sofrem e choram com estes erros intermináveis.

 

O perigo reside sempre na intolerância dos que não perdoam e teimam em ameaçar e provocar um revanchismo tolo, quando melhor seria esquecer.

 

Bom seria também que os arquivos do regime autoritário estivessem abertos. Mostraria que muita coisa da história desmistificaria a vanglória de muita gente.

 

Que os mortos enterrem seus mortos!  Assim nos aconselha um Deus; Jesus que de tão incompreendido foi surrado, torturado e assassinado na cruz. Mas, isso é outra história; sempre de ditadura e ditabranda.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais