A Nino Carva “Do lado que relampeia, É do lado que a chuva vem, Ó você que vem de lá, Trás notícia do meu bem, Diz que ela foi embora, Ou se de saudade chora, Como eu choro também.” Era assim que o velho Lua cantava, em sétima, associando a chuva ao amor, no plano fecundo da existência, ou no ciclo tristonho da saudade. Toda a obra de Luiz Gonzaga – safoneiro, autor, intérprete – percorre um largo campo de apropriação da vida real e, ao mesmo tempo, onírica, do povo nordestino. Não há descuidos, e os encômios, quando existem, são justificáveis pela relação subalterna que têm marcado, historicamente, a vida das populações. Ao intérprete não cabe censurar a fonte que lhe dá o mote e lhe inspira a arte. A sua morte, há exatos 16 anos, abafou uma das únicas expressões de sentimento pleno da alma de um povo, e deixou um vazio abissal, caótico, inerte. Luiz Gonzaga era o que era, como o povo é o que é. Nele não havia respingos de maquiagem escorrendo, como algo falso, postiço, em sua fisionomia de artista popular. A sua arte possuía a clareza absoluta dos simples, espelhando a face verdadeira de um povo inteiro, deserdado da sorte, fortificado pela esperança, caminho indefinidamente para Canaã. Ele também fez saudações às paisagens (Juazeiro, Juazeiro/me arresponda por favor/Juazeiro, velho amigo/onde anda o meu amor), aos bichos que povoam as catingas (Acauã, Acauâ vive cantando/durante o tempo do verão/no silêncio das tardes agourando/chamando a seca por sertão), da mesma forma como ajoelhou e entoou os cantos da fé e da devoção (Senhora da Aparecida/Senhora da Aparecida/ alegremente te louvo/alegremente te louvo/cubra de graças Helena/cubra de graças Helena/padroeira do meu povo/padroeira do meu povo), num bazar mosaicado de coisas diversas, que parecem contradições sobreviventes na textura social do Nordeste. Essa compreensão limpa, que o artista extraiu da realidade do seu povo, difere, profundamente, da visão externa da cultura nordestina, irremediavelmente estimulada a cindir-se em dois cordões: o azul e o encarnado, cada qual com seu significado e com seu código ideológico. A permanência da arte de Luiz Gonzaga na boca e na memória do povo deveu-se, com certeza, ao seu modo de ser verdadeiro. Sua ausência produz, por isso mesmo, uma sensação de perda irreparável, porque o Brasil sofisticado de hoje não comporta e nem suporta uma arte inteiramente rica de espontaneidade. Nem há, no meio da massa nordestina, mais sintomas dessa leveza casta, ou da ira santa – no dizer de Milton Nascimento -, vez que o contexto está comprometido pela manipulação que avassala o país e que faz, no Nordeste, estrago impiedoso. A antena de televisão é, em toda a região nordestina, um indicador a atestar a ruptura com o universo cultural antigo, tradicional, popular, que serviu de fonte inesgotável das expressões da vida, nas quais Luiz Gonzaga colocou ritmo e voz. O registro fonográfico e iconográfico de Luiz Gonzaga tem valor intrínseco, profundo, porque o que ficou de sua presença negra, bonita, robusta, e dos trajes que vestiu – de vaqueiro, de cangaceiro, de Rei do baião – é um tesouro que o povo vai, para sempre, guardar intacto, como saudade e como reserva memorial de sua história. Para os brasileiros em geral, que pouco ou nada sabem dos nordestinos, o legado de Luiz Gonzaga certamente não passa de um pedaço exótico de um povo mítico. O mito, que precede a história, também tem, muitas vezes, a função de encobri-la. Visto pelo gesso da mitificação, o Nordeste perde todo o seu traçado vivo de luta e transforma seu elenco de insurgentes em personagens alegóricos, cuja autenticidade vai disfarçada na espetacularização manipuladora.
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