Dona Canô: para não esquecer
Quando cheguei à casa de dona Canô, em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, tive a mesma impressão da primeira vez que cheguei à casa de Hilda Hilst em Campinas, São Paulo. Era um meio dia de sol, daqueles amarelos intensos que nos sufoca. Ao postar-me na calçada um azul e branco das paredes, contrastando com um portão antigo pequeno e meio que átrio dividia a entrada do corredor até a sala e o quarto onde estava dona Canô.
Levado pela cantora Amorosa, diva da música sergipana, de imediato Rodrigo Velloso veio abraçar-nos, num incêndio entre emocionado e querido. Levou-nos até a copa, onde surge uma varanda com uma mesa grande, que dá para oito quartos ao fundo e muitas pessoas da família, entre elas Irene e Mabel, mãe de Bellô Velloso, todos com dois L, menos Caetano que foi registrado com um L só. Ali esperamos a estrela maior, enquanto Rodrigo nos oferecia uma cerveja e abraçava-nos com uma purificação que só existe em Santo Amaro. A varanda foi ficando grande, imensa – crianças tomavam banho, ao fundo(a casa vai de uma rua à outra) e pelo corredor, cercado de quadros, imagens de Nossa Senhora que só faltam falar, fotos de Bethânia, Caetano, Lula e lembranças, muitas que vão dos móveis antigos – tudo no seu devido lugar como numa missa. Dona Canô chamou, eu vou. Lá vem ela pelo corredor nublado, amparada por Rodrigo, toda de branco, cabelo preso, mãos alvíssimas e o sorriso – ah! o sorriso! Cumprimenta Amorosa, Dani e eu beijo a sua mão pedindo sua bênção. Amor à primeira vista. Senta na cadeira de balanço ao lado de Mabel que mostra uma página policial onde ela é notícia e rimos(todos). Dona Canô revela-se ali: uma rainha. Uma deusa, observadora de tudo diz: ainda bebe Manoel? Ele responde: estou apenas começando. Irene se despede. E ela pede que cesse a bebida que o almoço vai ser servido. Os tons da tarde vão ficando lilases, azuis e róseos, como as unhas de Canô, pintadas com capricho. Uma rainha. 100 anos de pernas cruzadas em vestido de linho braspérola. Uma rainha. Ao mesmo tempo começa a inclinar a cabeça para o fundo onde crianças se banham. O que acontece lá ao fundo – pergunta ela. Mabel responde: estão tomando banho, mamãe.
E ela se interessa pela paisagem que se dissipa entre as bicas pintadas de azul. Dona Canô: ali está revestida de luz. Pôde daquela barriga sair Caetano Veloso e Maria Bethânia e Mabel que pariu Bellô e Rodrigo Velloso, Clara Maria e Caetano Emanoel e mais: Nicinha e Irene. Quase que silenciosa ela observa tudo e é Canô, rainha, por ela, os filhos sempre confessaram que são o que são por causa dela. A tarde vai invadindo solenemente de emoções a varanda. Dona Canô ri um riso dobrado, daqueles fios de ouro que só uma alma como a dela pode conceber. Hora do almoço. Ela nos convida para a mesa principal. Rodrigo, o anfitrião, que deixou seu belo apartamento para cuidar da mãe, depois que um neto caiu sobre ela ao abraçá-la, vai dizendo onde cada um deve se sentar. A cozinha está em ação total. Dona Canô senta-se e os pratos vão vindo. Um peixe com pimenta dentro(nada de servir pimenta separado), um bacalhau empanado e um sururu e um feijão bárbaro com ovo dentro. Dona Canô é cortejada(rainha que é) o tempo todo por Rodrigo. Come pouquíssimo, como passarinho, muito fina, quase uma monja, vai colocando a farinha branca, alvíssima no prato e ainda deixa. Está tudo maravilhoso. Ela pergunta: tem suco de quê? As vozes se entrelaçam enquanto Mabel ao meu lado vai também, como a mãe, comendo vagarosamente, mas devagar e sempre. É um presente estar ali naquela mesa com dona Canô. Não dá para imaginar o quanto. Até que Amorosa fala em Hilda Hilst e Mabel se derrete toda, apaixonada que é pela escritora que foi considerada pelo Le Monde como o ápice da escrita literária, mas morreu no esquecimento no Brasil. A tarde vai se alongando, as paredes da casa de um branco gelo e dono Canô ali, sentanda à mesa conosco, rindo às vezes um riso dobrado, quando é lembrada de algo prosaico. De repente surge Rodrigo Velloso, uma criatura inacreditável de alma grande, olhos profundos como que descobrindo o mundo e seus pesares, me leva até o toalete onde penteio o cabelo com pente dado por ele. É sempre assim: Rodrigo quer o outro feliz. Diz na mesa que Caetano ligou e pede para ser informado sobre tudo que acontece com a mãe. Traz um creme de abacaxi com maçã que ele mesmo fez para o almoço. Dona Canô que já havia terminado, recebe do filho a primeira porção. Ela vai comendo e tirando a felpas do abacaxi, uma a uma e pondo no guardanapo como uma rainha. Não desce – diz ela. Dona Canô enche a sala com sua ternura, não dá para perguntar a ela nada. Ela diz tudo em silêncio. Mabel brinca: mas onde está a sobremesa mesmo? E Nicinha fala: eu gosto mesmo é de açúcar, algo doce, doce mesmo. Rimos todos e dona Canô dobra o riso de novo, sob as hastes dos seus óculos de grau. A tarde vai enchendo-se ainda mais de luz, quando Canô pretende voltar ao quarto para descansar – ela aos cem está plena de paraísos – é Canô: uma rainha. Uma poeta da vida, dona de todas as respostas.
Vamos ficando todos comovidos. Lágrimas nos olhos. Destinos que o mundo não responde. A tarde vai lilasando, amarelando no sol de Santo Amaro da Purificação. Visito os seus santos no seu quarto, levado por Rodrigo. Ela acena delicadamente. A insustentável leveza do ser, como um filme chinês, um bhagavad gita, uma palavra nunca dita antes. A tarde desce. Dona Canô para sempre. Imponderável.