É impossível governar sem medidas provisórias?

                  O Congresso Nacional debate, no âmbito de comissões especiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, propostas de mudanças constitucionais voltadas para a contenção do excessivo uso e conseqüente abuso na edição de medidas provisórias – atos jurídicos com força imediata de lei, e só posteriormente submetidas à apreciação do Poder Legislativo – pelo Presidente da República.

                   A reação do Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva foi imediata: “Qualquer deputado ou senador sabe que é humanamente impossível governar sem medida provisória, porque o tempo e a agilidade que as coisas costumam acontecer, muitas vezes, são mais rápidos que o tempo das discussões democráticas que são necessárias no Congresso Nacional”.[1]             

                        Previstas na Constituição para serem adotadas pelo Presidente da República em casos de relevância e urgência[2], as medidas provisórias deveriam ser instrumentos da atividade legislativa excepcional do Poder Executivo (eis que a atividade legislativa é precípua do Poder Legislativo), em situações tais em que a destacada importância da matéria e a impossibilidade de espera pela tramitação regular de um projeto de lei no Congresso Nacional justificassem a sua adoção.[3]

                   Infelizmente não tem sido essa a crônica da utilização das medidas provisórias pelos Presidentes da República que governaram o Brasil após a promulgação da Constituição de 1988. Já se tornaram clássicas (enquanto referência de absurdos e até de pilhérias com coisa séria) na literatura político-jurídica especializada as referências à medida provisória editada pelo então Presidente da República José Sarney, com o fim de incluir o nome do Marechal Deodoro da Fonseca no livro dos “heróis da pátria”, ou à medida provisória editada pelo então Presidente da República Itamar Franco para autorizar a compra de goiabada para o Palácio do Planalto. Para não falar na medida provisória adotada pelo então Presidente Fernando Collor bloqueando ativos financeiros e depósitos em conta-corrente e cadernetas de poupança dos brasileiros, ou da medida provisória editada pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso para impor a aplicação de multas aos membros do Ministério Público no caso de oferecimento, por eles, de denúncias (ações penais) consideradas de “má-fé”.

Além disso, o abuso na edição e reedição cotidiana de medidas provisórias desprovidas de urgência ou relevância ou de ambos, pelos sucessivos Presidentes da República, fizeram do Poder Executivo no Brasil o ator político legislativo por excelência, caracterizando usurpação da função legislativa pelo Poder Executivo, em prejuízo ao princípio da separação de poderes (“Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”; Art. 60 (…) § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (…) III – a separação dos Poderes;”) e ao próprio Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil (Art. 1º).[4]

                   Ressalte-se, na mesma linha, que as últimas medidas provisórias editadas pelo atual Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, à exceção apenas da MP nº 421 (que aumenta o valor do salário mínimo a partir de 1º de março de 2008), não possuem a urgência constitucional a exigir o uso do ato jurídico com força imediata de lei, podendo muito bem ser encaminhadas em forma de projeto de lei para o espaço democrático do Congresso Nacional para fins de discussão, aperfeiçoamento e apreciação.[5]

                   Além disso, cabe fazer um registro de um tão importante quanto pouco lembrado momento da história política recente brasileira. No início de 1992, o então Presidente da República Fernando Collor, acuado por críticas de conduta governativa autoritária, resolveu que não mais se utilizaria da edição de medidas provisórias e passou algo em torno de quatro meses sem editar nenhuma nova medida provisória. E, ao que consta, o país não ficou ingovernável por esse motivo.[6]

                   Noutras palavras: não é impossível governar sem medidas provisórias. Na verdade é muito cômodo governar com elas. O argumento da ingovernabilidade é tão terrorista e inconsistente quanto era o argumento de que o país não podia sobreviver sem a CPMF (como sabemos, a CPMF não foi prorrogada, e a arrecadação tributária ainda assim aumentou!).

                   Que o Congresso Nacional não ceda às pressões do Presidente da República e, afirmando-se como Poder realmente independente, aprove emenda constitucional que realmente limite o uso de medidas provisórias a situações estritamente indispensáveis (por exemplo, para abertura de crédito extraordinário no caso de despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública). Ou então, ainda sem aprovação de emenda, que passe a adotar a prática já admitida pela Constituição de rejeitar de imediato, sem apreciação do mérito, as medidas provisórias que não preencham os pressupostos constitucionais da urgência e relevância![7]



[1] In: Folha de São Paulo de 19 de março de 2008 – p. A4.

[2] “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submete-las de imediato ao Congresso Nacional” (com redação conferida pela emenda constitucional nº 32/2001).

[3] Ressalte-se que, ainda que o caso seja de urgência, mas de uma urgência relativa, que possa esperar por um prazo de ao menos 100 (cem) dias, a Constituição faculta ao Presidente da República o encaminhamento de projeto de lei com solicitação de urgência para sua apreciação. Nessa hipótese, Câmara dos Deputados e Senado Federal disporão, cada qual, de 45 dias para apreciação do projeto, e a Câmara de mais 10 dias se o Senado fizer alterações no projeto, para conclusão da votação, sob pena de “trancamento da pauta” (“ficam sobrestadas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se ultime a votação”) (Art. 64, §§ 1º e 2º).

[4] A emenda constitucional nº 32/2001, aprovada pelo Congresso Nacional já na perspectiva de tentar conter o abuso na edição de medidas provisórias, aprovou a proibição da sua reedição na mesma sessão legislativa (§ 10º do Art. 62) e inseriu expressamente matérias que não podem ser regulamentadas por meio de medida provisória (§ 1º do art. 62).

[5] Recentes medidas provisórias foram editadas pelo Presidente Lula para transformar o cargo de Secretário Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em cargo de Ministro de Estado, para proibir a comercialização de bebidas alcoólicas em rodovias federais, para modificar o regime de franquias postais, para instituir os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo.

[6] Depois vieram as denúncias de práticas de improbidade administrativa que levaram ao seu impeachment, e nem a crise que se instalou no país desde a instalação da CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as denúncias até a conclusão do julgamento pelo Senado Federal (o que durou até o fim do ano de 1992) tornaram o país ingovernável.

[7] Art. 62, § 5º: “A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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