Educação burocrática

– Mas essa capa não tinha que ser vermelha?

– Sei lá… Tinha?

– Acho que sim. Quer dizer, todo mundo traz vermelha…

– E onde tá escrito que tem que ser vermelha? Eu não achei em lugar nenhum. E eu acho azul mais bonito! – um sorriso com a última frase.

Um silêncio em eternos três segundos: – É, acho que não tá escrito… Mas todo mundo traz vermelha, sabe?

Naquele instante, acho que ele percebeu a profundidade do terreno pantanoso para o qual eu inadivertidamente o tinha arrastado. Ainda pensei em perguntá-lo “mas e por que todo mundo traz vermelha”, entretanto, já tinha simpatizado com o agente da burocracia e achei que seria um ataque muito baixo, poderia tirar-lhe o chão. De qualquer forma, me recusei a entrar sozinha no mundo sem sentido da burocracia eterna e o arrastei comigo sem piedade. No final de toda uma saga inexplicável, de respostas “porque sim” e “porque todo mundo sempre fez assim”, minha dissertação de mestrado não foi aceita, porque a capa, por motivos mágicos e irreveláveis, deveria ser vermelha, mesmo que eu e mesmo o agente burocrático concordemos que azul é mais bonito.

Eu saí da universidade, com meus livrinhos azuis, e um riso de quem encontrou a ironia mais cruel da vida diante de si. Dentro daquelas capas azuis, eu contava uma história sobre um livro que se chama “K.”, escrito pelo Bernardo Kucinski. Nesse livro, o professor de jornalismo conta, através da ficção, a história do desaparecimento da sua irmã e do seu cunhado, pelo Estado ditatorial brasileiro, em 1976. A certa altura da história, Kucinski compara a burocracia da ditadura civil-militar daquela época com o Estado inacessível descrito por Franz Kafka em “O Processo”. E eu, ao reler esses dois livros que moram no meu coração, escrevi longas páginas da minha dissertação sobre essa relação entre burocracia e Estado ditatorial, sobre o retrato literário dessa relação e como Kucinski e Kafka trabalharam essa ideia.

Os professores que leram gostaram do que eu escrevi, acharam bonito e me deram até alguns elogios acadêmicos por isso. Daí que um certo dia, quando eu finalmente resolvo ir entregar a minha dissertação à universidade, sou arrastada para dentro desse mesmo mundo da burocracia irrefletida. “Porque todo mundo sempre trouxe com a capa vermelha”. E quando eu saí da universidade naquele dia, eu nem conseguia sentir raiva direito, por ter que refazer as capas e essas coisas, eu só conseguia pensar na esquizofrenia gritante daquela instituição de ensino. Dentro das salas, há aplausos para quem expõe a burocracia do Estado, que camufla sua crueldade numa máscara de papéis a serem carimbados em três vias e mantém o cidadão afastado a uma “margem de segurança”. Contudo, essa mesma burocracia é o que rege o cotidiano do fazer educacional da mesma instituição.

Sinto que os estudantes são continuamente ensinados a “usar a capa vermelha, porque todo mundo usa”, sem refletir sobre isso. Continuem caminhando pelos mesmos caminhos já caminhados que é mais seguro para todos nós. Por mais inexpugnáveis que sejam esses caminhos. Uma educação que serve ao Estado que prefere cidadãos obedientes, mas, principalmente, ao mercado que nos ensina como, o que e onde consumir, como todos estão fazendo. Sem questionamentos, por favor, perguntas são perigosas, elas nos tiram de nossa segurança. Essa é uma educação que mata as ideias, que mata a criatividade vibrante que recria o mundo a cada novo olhar, que asfixia o novo antes mesmo que ele brote.

Ouço sempre muitos adultos saudosos e algo tristes suspirarem que hoje em dia já não nascem mais gênios como Einstein que inventem soluções, ou como Heitor Villa-Lobos que inventem novas melodias, ou como Clarice Lispector que inventem novas formas de olhar. E eu penso aqui com meus botões imaginários que, numa sociedade que celebra a educação que encaixota ideias e apresenta caminhos pré-fabricados, em que a criação vibrante e selvagem é tratada com medicação psiquiátrica, cada criança, adolescente, adulto, sentado em suas cadeiras enfileirados e em silêncio durante horas a fio recebendo as palavras da iluminação real, impossível que nasça mesmo aqueles que vão criar o novo. O novo é devidamente impedido de brotar, sufocado, nas aulas que nos ensinam que a matemática, a física e mesmo a literatura são caixinhas apartadas da vida, separadas em blocos de 50 minutos por dia, duas vezes por semana.

A criatividade abundante que encanta o mundo e faz a humanidade ir adiante brotará mais fácil se for cultivada num ambiente amoroso que a incentive. Professores que sejam companheiros das descobertas e não depósitos de sabedoria, ensinamentos que nos auxiliem a caminhar pelo mundo e pelas nossas vidas, e não conteúdos desconectados da nossa realidade e, claro, que isso se reflita nas estruturas de funcionamento das instituições de ensino. E eu vibro sinceramente para que isso um dia deixe de estar presente apenas em (belas) iniciativas isoladas e se torne o fazer comum de todas as escolas e espaços educacionais. Amém.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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