O texto de hoje não é propriamente uma análise jurídica de um tema, mas um verdadeiro manifesto em defesa do direito de greve dos trabalhadores e dos servidores públicos. Isso porque o exercício desse direito (de assento constitucional) vem sendo limitado, tolhido, menosprezado, vilipendiado, agredido, tanto em âmbito nacional como especificamente no âmbito do Estado de Sergipe. Nesse momento, diversas categorias de servidores públicos estaduais (organizadas em seus respectivos sindicatos) já iniciaram movimento grevista ou anunciam a sua iminente deflagração, em campanha salarial e reivindicações específicas por melhores condições de trabalho e valorização profissional. Contudo, vêm encontrando dificuldades para exercer o seu legítimo direito assegurado constitucionalmente, seja por retaliações administrativas promovidas pelo órgão público respectivo, seja por decisões judiciais liminares que declaram a abusividade da greve e impõem pesadíssimas multas aos sindicatos correlatos. A Constituição Brasileira de 1988 assegurou peremptoriamente o direito de greve dos trabalhadores de empresas privadas, sem esquecer de já impor condicionantes e limites que deveriam ser dispostos em lei: Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. § 1º A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. § 2º Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei. Sobre o tema, assim se pronunciou o constitucionalista José Afonso da Silva: (…) a greve … não é um simples direito fundamental dos trabalhadores, mas um direito fundamental de natureza instrumental e desse modo se insere no conceito de garantia constitucional, porque funciona como meio posto pela Constituição à disposição dos trabalhadores, não como um bem auferível em si, mas como um recurso de última instância para a concretização de seus direitos e interesses. (…) (…) a lei não pode restringir o direito mesmo, nem quanto à oportunidade de exercê-lo nem sobre os interesses que, por meio dele, devam ser defendidos. Tais decisões competem aos trabalhadores, e só a eles (art. 9º). (…) Quer dizer, os trabalhadores podem decretar greves reivindicativas, objetivando a melhoria das condições de trabalho, ou greves de solidariedade, em apoio a outras categorias ou grupos reprimidos, ou greves políticas, com o fim de conseguir as transformações econômico-sociais que a sociedade requeira, ou greves de protestos. Também não há mais limitações quanto à natureza da atividade ou serviços, como no sistema revogado, que vedava greve nas atividades ou serviços essenciais. A esse propósito, só cabe à lei definir quais serviços e atividades sejam essenciais e dispor sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º). O que se espera, como sempre aconteceu, é que os próprios trabalhadores promovam o atendimento dessas necessidades inadiáveis da comunidade, até para não tê-la contra si. (…) Finalmente, os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei (art. 9º, § 2º).[1] Na mesma linha de entendimento, já tive a oportunidade de sustentar que o direito de greve se apresenta como uma das manifestações constitucionais do direito de resistência: O direito de greve, conquista histórica dos trabalhadores de todo o mundo (…) também constitui uma manifestação do direito de resistência. Afinal, a greve é um instrumento coletivo de que dispõe o trabalhador, cabendo tão somente a ele decidir sobre quais interesses devam ser defendidos através dela. Na prática, as greves são deflagradas em movimentos de reivindicação por melhores salários, melhores condições de trabalho, em busca do atendimento e da efetivação das normas do artigo 7º da Constituição, o que por si só já se pode chamar de direito de resistência, uma vez que, ao paralisar o serviço, está-se resistindo à opressão patronal, que desrespeita os direitos humanos dos trabalhadores que deliberaram pela greve, mais especificamente os chamados direitos fundamentais de segunda geração ou dimensão. Nesse sentido, o exercício da greve simboliza resistência da classe trabalhadora à opressão patronal (…) Mas não é somente isso. Foi bastante comum no final do período de ditadura militar (fim da década de 70 e início da década de 80) e nos Governos Sarney e Collor a prática, por trabalhadores organizados em sindicatos, em todo o país, das famosas “greves gerais”, em protestos genéricos pela redemocratização do país e pelas eleições diretas, contra a política econômica, contra os baixos salários, contra os desmandos administrativos e contra a corrupção, entre outras pautas. Os conservadores de plantão não perderam tempo e logo rotularam essas greves de “políticas” e de ilegais, por não possuírem um conteúdo especificamente decorrente da relação de emprego, e argumentaram que os empregadores não podiam ficar privados da prestação dos serviços por conta de movimentos reivindicatórios contra o Governo. Esquecem-se porém de que as chamadas “greves gerais” possuem assento constitucional, porque, como já frisado anteriormente, na linguagem constitucional somente aos trabalhadores compete decidir sobre que interesses devam ser defendidos pela greve. E se os trabalhadores, reunidos em Assembléias, deliberam livremente pelo uso da greve como instrumento de luta pela democracia e de protestos contra a opressão dos detentores do poder, ninguém, a teor da Constituição, poderá impedi-los disso (a não ser o Poder Judiciário, no controle da legalidade dos procedimentos e quanto aos limites da greve, não com relação ao seu mérito), configurando-se exatamente aí outra manifestação constitucional do direito de resistência. O exercício do direito de greve – direito fundamental – traduz-se, nesse modalidade, em exercício da resistência política, manifestação da cidadania contra os abusos do poder político, “controle social do poder”, na linguagem de Carlos Ayres Britto.[2] É bem verdade que, em relação ao servidor público, o direito de greve foi assegurado em termos mais tímidos. Originalmente, a Carta Magna previu que o direito de greve dos servidores públicos seria exercido nos termos e limites definidos em lei complementar. Após a emenda constitucional nº 19/98, tais termos e limites passaram a dever ser estabelecidos em lei específica: Art. 37 […] […] VII – o direito de greve será exercido nos termos e limites definidos em lei específica; Ao remeter à lei específica a definição dos “termos e limites” para o exercício do direito de greve pelos servidores públicos, a Constituição deixou margem para dúvidas quanto à eficácia jurídica (aplicabilidade) da norma. A interpretação majoritária, tanto na doutrina como na jurisprudência – em especial do Supremo Tribunal Federal – era no sentido de inexistência do direito de greve dos servidores públicos enquanto não editada a lei regulamentadora. Todavia, esse problema foi superado no ano passado, pois, em 25/10/2007, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de três mandados de injunção[3] (MIs nº 670, 708 e 712), impetrados por sindicatos representativos de categorias de servidores públicos e que versavam sobre o direito de greve dos servidores públicos. Naquela ocasião, o STF decidiu que, enquanto não for elaborada a lei específica exigida pelo inciso VII do Art. 37 da Constituição Federal, os servidores públicos poderão exercer o direito de greve, nos termos e limites tomados de empréstimo, por analogia, da Lei nº 7.783/89, que regula a greve no âmbito dos trabalhadores da iniciativa privada. Mais ainda, o STF estendeu os efeitos dessa decisão para todos os servidores públicos do Brasil, e não apenas para os servidores públicos representados pelos sindicatos que fizeram parte dos respectivos e já mencionados processos (vencidos, nesse ponto, os Ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski). Neste mesmo espaço do portal da Infonet, pude apresentar (em 07/11/2007), em uma visão panorâmica, as regras da Lei nº 7.783/89 aplicáveis – por analogia – ao exercício do direito de greve pelos servidores públicos, fixando-lhe os seus termos e limites.[4] Assim, seguidos esses termos e limites, não há como aceitar a tese da abusividade de greve de servidores públicos, sob o fundamento de ofensa ao princípio da continuidade do serviço público e dos prejuízos que podem ser causados à população. É evidente que a greve em atividades que consubstanciam serviços públicos causará certos transtornos à coletividade. Porém, esses transtornos são administráveis, dentro das balizas impostas pela Lei nº 7.783/89. E algum transtorno a greve precisa causar mesmo, do contrário não vai surtir o efeito de chamar a atenção da sociedade para a eventual justiça e legitimidade de suas reivindicações. É importante lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro não prevê mecanismos efetivos de negociação coletiva entre servidores públicos e o Poder Público – como ocorre normalmente no âmbito das relações contratuais de emprego, por via de convenções coletivas, acordos coletivos e dissídio coletivo – tendo em vista a exigência constitucional de que qualquer vantagem remuneratória, como de resto qualquer regramento da vida funcional dos servidores públicos, deve ocorrer por meio de lei formal. Ou seja: realiza-se a greve como um instrumento de pressão política, na tentativa de chamar a atenção da sociedade para o problema e da necessidade de a sociedade acompanhar com maior atenção – porque beneficiária direta dos serviços públicos prestados – a problemática envolvida, a necessidade de uma melhor valorização dos servidores, porque isso teria, como decorrência lógica, a valorização e a melhor prestação do serviço público para essa mesma sociedade. A eventual não oportunidade da greve, ou ainda eventual ilegitimidade das reivindicações, será apreciada por essa sociedade, que pode negar apoio ao movimento e voltar-se contra a categoria em greve, isolando-a, enfraquecendo-a e praticamente levando-a ao retorno às atividades. Essa é uma ponderação que cabe à categoria de servidores públicos efetuar, para então decidir livre e soberanamente pela deflagração da greve, pela sua continuidade, pela sua interrupção ou pelo seu fim. O que não se pode é compelir os servidores públicos a não realizar a greve, nem tampouco encerrar negociações porque os servidores públicos resolvem exercer um direito assegurado constitucionalmente (agora com respaldo em decisão do Supremo Tribunal Federal acima apontada). Ao exercício de um direito não podem corresponder sanções ou retaliações. Precisamos nos acostumar com as tensões, conflitos e contradições inerentes à complexidade e pluralidade de uma sociedade democrática. Tais conflitos e tensões devem ser resolvidos na base da negociação política, da democracia nos procedimentos, da argumentação e do convencimento, e não na base da força! Mais respeito, portanto, para com o direito de greve. Ele é um direito fundamental, como tantos outros assegurados na Constituição! O Supremo Tribunal Federal aprovou na última quarta-feira (30/04/08), em votação unânime, o enunciado da Súmula Vinculante nº 04: “Salvo os casos previstos na Constituição Federal, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”. Isso decorreu do primeiro julgamento de recursos extraordinários em que a Corte entendeu haver repercussão geral, ou seja, entendeu que as questões constitucionais discutidas na causa extrapolavam os interesses das partes envolvidas e na verdade interessavam a uma grande quantidade de outras pessoas envolvidas em demandas semelhantes (segundo informações preliminares, a decisão tomada vai repercutir em cerca de 580 outros processos semelhantes, que tramitam no próprio STF, e em mais de 2.400 processos em tramitação no TST). O curioso é que, no momento em que o STF aprovou esse enunciado, só havia no Plenário 7 (sete) Ministros, ausentes os Ministros Carlos Alberto Menezes Direito, Ellen Gracie, Eros Grau e Joaquim Barbosa (o que pôde ser constatado pela TV JUSTIÇA). Ou seja: não foi cumprida a exigência constitucional de que a aprovação de súmulas vinculantes decorra de decisão tomada por dois terços dos membros do STF, ou seja, aprovação por pelo menos 8 (oito) de seus 11 (onze) Ministros (Art. 103-A da CF/88). A ânsia do STF em dar vazão a novos institutos trazidos pela “Reforma do Poder Judiciário” (emenda constitucional nº 45/04), tais como a súmula vinculante e a repercussão geral, não pode desconsiderar exigências da própria Constituição para sua concretização. [1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 304-305. [2] MONTEIRO, Maurício Gentil. O direito de resistência na ordem jurídica constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 150-153. [3] Diz a Constituição: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (inciso LXXI do Art. 5º).
Súmula Vinculante nº 04 e Repercussão Geral
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