O ano de 2015 começou com uma grande perda para a educação sergipana.
Faleceu neste três de janeiro a Professora Maria da Glória Menezes Portugal Montes, mestra de gerações de alunos, nos Colégios de Aracaju, uma longa vida dedicada ao estudo e ensino da língua e literatura francesas.
Como dito, foi uma longa vida realmente. Faleceu aos noventa sete anos e meio. Quatre-vingt-dix-sept et demi, como diriam os franceses.
Alcançou uma idade raramente atingida. Uma verdadeira bênção, poder-se-á dizer em agradecimento ao Senhor da Vida, em tantos anos fecundos, cercada por seus familiares e amigos, várias gerações de ex-alunos, de tal modo que a sua partida esvazia um pouco a vida que resiste em nós.
Mas, neste contexto de perda, poderemos lembrar por necessário os versos de John Donne, poeta inglês do século XVII, sempre necessário, afinal "Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti".
Mas, se a morte de qualquer homem nos diminui, a morte de alguém que nos é mais próxima diminui sobremodo o nosso existir.
Nós não somos tão santos e perfeitos para carpir a todos igualmente, tanto que na sabedoria popular há aquele dito xistoso para ensejar uma avaliação de carpição e lágrima: “Defunto que não conheço, nem rezo, nem ofereço”.
E é nesse contexto que desejo falar sobre a Professora Glorita Portugal, tentando apresenta-la ao leitor que perde algum tempo com meus textos.
Preliminarmente insiro uma dúvida: Não sei se ao nascer a menina Maria da Glória foi registrada como Góis Menezes ou Menezes somente. Sei apenas que nasceu no dia 27 de junho de 1917 no Engenho Beleza, localizado no povoado Caititu, em Maroim – Sergipe, filha de Inácio José de Menezes e Jardelina de Góes Menezes.
O nome Glorita pegou-lhe como apelido para a vida inteira, afinal a providência lhe dotara graça e doçura, num físico frágil de porte miúdo.
Sua família era pequena; quatro pessoas apenas: Glorita, a filha mais velha, o pai, a mãe, e um único irmão, Geraldo Magela, que teria uma vida destacada, enquanto médico e industrial, notabilizando-se como pioneiro na exploração e fabrico de gesso em Sergipe.
Quanto a Glorita, iniciou o estudo das primeiras letras numa pequena escola no Povoado Caititu. Depois estudou um ano no Colégio Nossa Senhora da Conceição em Maroim, escola da Professora Violante Macieira.
Vendo os pais que a menina progredia nos estudos, matricularam-na aos oito anos na Escola da Professora Zizinha Guimarães, em Laranjeiras, notável educadora daquela região açucareira da Cotinguiba.
Glorita adorava Dona Zizinha. Para ela, Zizinha era um educadora completa. Ensinava os alunos a ler, escrever, trabalhar com números, argumentar com correção e zelo vocabular, até bem proceder na mesa e no bom convívio social. Até bailes programava para que seus alunos aprendessem a dançar e bem se comportar nos eventos sociais.
Foi com Dona Zizinha que Glorita tomou conhecimento do idioma francês, entabulando os primeiros diálogos, a conjugação verbal, a boa versão e tradução, exibindo rápido a pronúncia escorreita e a entonação encantatória do idioma de Chateaubriand.
Desnecessário dizer que foi uma grata surpresa para a mestra que logo a utilizaria como sua auxiliar, em ajuda aos colegas mais atrasados.
Explicitado assim, parece que estou a desenvolver uma excessiva louvação.
Mas, quem aos doze, treze anos, numa terra de monoglotas analfabetos como a nossa, mesmo nos tempos atuais de pleno fastígio tecnológico e rapidez em comunicações, quem é capaz de exibir alguma proficiência numa língua estrangeira, num feito igual ao dela menina, naquele tempo de pedra e lousa?
Pois bem! Concluído o curso no Colégio de D. Zizinha, seu pai a manda para Aracaju, matriculando-a no Colégio Tobias Barreto do Professor Zezinho Cardoso, aí ficando até 1934, quando se casa aos dezessete anos com o Professor Francisco Portugal.
Francisco Portugal era um homem maduro, um quarentão avançado, quase um cinquentão à época do casamento. Oriundo de Canavieiras – Bahia, de compleição robusta, muito alto, próximo de 2 metros de altura, bastante forte e volumoso, de sentimentos ternos e simples. Era um vocacionado para o estudo de idiomas. Tornara-se por conta de esforço próprio um poliglota, falando francês, inglês, espanhol, latim, alemão e grego.
Logo há uma simpatia do maduro professor pela jovem aluna que gostava de ser arguida no quadro-negro.
Um dia ele lhe diz em plena classe : “Vou m`avez donné un coup de coeur!” – “Un coup de coeur?!” – replicou espantada Glorita, em meio à classe que sorria sem nada perceber. A palavra “coup”, como “cou” e “cour” deleitavam a molecada.
Longe de querer provocar qualquer gracejo, Portugal dissera apenas que ela lhe tinha dado um tiro no coração, e que “même géant il`était amoureux, vraiment perdu et tombé en amour”. Era uma confissão de que mesmo sendo um gigante ele estava apaixonado, perdido e caído de amor.
Logo começaria o namoro e o noivado vem ligeiro com pedido feito pelo professor Acrízio Cruz, com o casamento sendo realizado em junho de 1934, na casa senhorial do Engenho Beleza, com os convidados chegando de trem.
Depois chegam os filhos: Primeiro vem uma menina. Foi-lhe dado o nome de uma flôr exótica; Eglantina, uma espécia de rosa selvagem com cinco pétalas rubras, nativa da Europa e Ásia Ocidental, utilizada como símbolo da ideologia socialista.
Depois veio outra menina e mais uma flor: Tornélia.
Em seguida surge um varão. É Fortunato, homenagem ao avô paterno.
O quarto rebento é Inácio, em reverência ao avô materno.
Em seguida vem o quinto: Fedro, um nome exótico. Homenageava-se agora o fabulista romano, nascido na Macedônia – Grécia, de muitas graças e exemplos.
Em seguida chegam mais duas mulheres e mais duas flores concebidas; Eglélia, junção das duas flores anteriores, Eglantina e Tornélia, e Verbena, a flor derradeira, que se tornaria também a caçula, uma vez que o último rebento, Geraldo Majela, falecera com apenas quatro meses de vida.
Nem sempre a vida de Glorita foi fácil como se poderia esperar de uma mãe ditosa; foram muitos os momentos de tristeza, apreensão e agonia.
Portugal, um homem vocacionado para o magistério de idiomas, resolve virar comerciante.
Dispondo de capital em suficiência, associa-se a um amigo que se dizia bom vendedor e experiente, alguém que bem calharia para um investimento do capital com o trabalho.
A sociedade restou um fracasso, com a firma indo a falência. Portugal que confiara muito no sócio amigo não conferia com suficiência o caixa da empresa, vindo a perder todo o patrimônio familiar no pagamento de dívidas e fornecedores.
É neste momento que Glorita começa a lecionar para auxiliar nas despesas domésticas. Os ganhos do marido ficaram insuficientes para a manutenção da prole.
Inicia a ensinar francês começando a se destacar e firmar seu nome.
Leciona no Colégio Tobias Barreto, no Nossa Senhora de Lourdes, na Escola Normal e no Atheneu
E é ali no velho Atheneu que vem prestar concurso, em 1957, como Professora Catedrática de Francês, defendendo a tese: “Traits Biografique de Madame Sévigné et Une Étude Minutieuse de L`accord du Participe Passé”( Traços Biográficos de Madame Sévigné e Um Estudo Minucioso da Concordância do Particípio Passado).
Na sua tese, escrita em francês, explica a razão da escolha de dois temas, alegando que em princípio desejara apenas escrever sobre a mulher na literatura francesa, isto, porém, a afastaria do programa para o concurso pleiteado.
Mas, replicava a candidata em francês: “Como renunciar a prestar a estas mulheres minha homenagem, quando eu tinha uma ocasião como esta? Teria sido sufocar meu entusiasmo, minha admiração por estas artistas do pensamento e da língua. Assim eu escrevi ao lado de um assunto gramatical a biografia de uma destas mulheres”.
E prosseguia: “A escolha fora difícil, e como acontece nestes casos, o coração foi vitorioso. Madame de Sévigné preenchia todas as qualidades que se pode exigir. Uma escritora clássica de um mérito que tem desafiado os séculos. Ela foi, antes de tudo, uma mulher, uma mãe. Seu valor moral andava de braços com seu valor intelectual. Sua vida foi um exemplo de honestidade e de amor.”
Contam os cronistas da época, que a provinciana Aracaju aguardava com ansiedade o concurso. Alguns não acreditavam no real saber de Glorita, afinal naquele ano de 1957, ela como quase todos na cidade, não dispunha de um título superior de Bacharelado em Francês. Houve até a insinuação de alguns examinadores fariam perguntas de bolso.
A história conta que Glorita os calara, a todos, afinal como premissa de desafio, solicitara desde o princípio do certame que todos os examinadores a arguissem em francês, e isso não estava no script.
E mais, o tal examinador falastrão, pego de surpresa, se recusou a arguí-la em francês, alegando que a plateia seria melhor esclarecida se tudo fosse perguntado e respondido em português.
Glorita respondeu-lhe na bucha com a verve de Voltaire: “Celui-ci est un test de français, pas portugais!”. Isto aqui é uma prova de francês, não português! “Votre Excellence peut demander en portugais, il n’y a pas de problem! De ma partie, je demande a monsieur le president de la banc pour m`autorizer a vous repondre en français”.
E assim aconteceu, inclusive para alguns risos da platéia; o examinador questionava em português e Glorita respondia a todos exibindo um francês fluente, castiço e gracioso, como era do seu feitio.
A vida da Professora Glorita, porém, nem sempre foi replena de flores que perfumam, houve muita tristeza e provação.
Em 1962 perde o seu querido “fessô”, como assim o chamava.
Francisco Portugal falecia sem ver o pranto de Sergipe reverenciando a sua morte como um “democrata e anti-fascista” para alguns, um poliglota culto para muitos, uma homem simples para todos, um professor permanecendo em saudades nas gerações de jovens que se saciaram com o seu saber.
Este, porém, não foi o único golpe para a família. Ainda viria um outro, muito mais forte e inesperado, afinal por premissa fundamental da criação, os pais jamais deveriam ser feitos para enterrar os seus filhos.
Mas, contraditando esta premissa que deveria ser pétrea, morre Eglantina, a filha primogênita, atacada por ferozes abelhas africanas, quando se dirigia para os seus trabalhos de pesquisa como bioquímica do Instituto Parreiras Horta, onde se dedicava à conservação da vida e da natureza.
São os caprichos da natureza e da vida.
Mas a vida tem que prosseguir. E eis Glorita viúva, muito jovem ainda, cheia de filhos para educar e encaminhar na vida.
E assim prossegue sua tarefa, vencendo desafios, caminhando sempre em frente, sem temer o “avenir”. Mesmo quando este futuro se apresenta incerto como foi o caso dos primórdios do movimento autoritário de 1964, quando insinuaram que em sua casa vigia um aparelho subversivo, só porque existia ali uma pequena biblioteca em russo, um resquício de seus estudos com Portugal.
Naquele tempo de medos vários e denúncias anônimas variadas, Glorita se vê forçada a enterrar a biblioteca russa no fundo do quintal, perdendo tudo porque era época de inverno.
Todavia, o inverno passa e o sol volta a florir a terra e até os homens. Não há nada de novo debaixo do sol. O que foi é o que será, diz o Eclesiastes.
Tempos depois, levada por Alcebíades Villas-Boas ao palácio do governo, Glorita se encontra com um velho amigo de criança, então todo poderoso condestável da revolução. Era o General Humberto Melo, que visitava Sergipe atemorizando políticos e intimidando todos. E assim, a insinuação subversiva morre como surgira.
Em testemunho deste fato, Glorita vê realçado o seu prestígio, assumindo no Governo Lourival Baptista a Direção do Colégio Estadual de Sergipe, por dois anos, época em que eu ainda jovem, lecionava Física.
Vem daí o meu conhecimento com a Diretora Maria da Glória Portugal, disciplinadora branda e terna. Uma chefia, caracterizada por liderança e firmeza naturalmente consentidas, sem exercícios de pressão ou de arbítrio.
E os anos prosseguem. E eis que chega o momento de aposentar-se. A despedida se faz com muitas lembranças de colegas e alunos.
Vai morar no Rio de Janeiro. Ali encontra um parente, João Alfredo Montes e sua esposa.
João Alfredo, filho do professor Alfredo Montes, ex-professor e ex-diretor do Atheneu, onde lecionara Física por décadas estava aposentado e vivia no Rio com a esposa e um filho.
No seu tempo de professor, João Alfredo fora apelidado pela estudantada gaiata do Atheneu como “Professor Baleadeira”, tudo porque nos seus modelos de elasticidade, impulso e quantidade de movimento, achava mais prático explicar tais fenômenos, sugerindo o estilingue como melhor exemplo ao alunado, a tão conhecida baleadeira, com a qual os alunos derrubavam muitos oitis na Praça Camerino.
Pois bem! Tempos depois, eis que o Professor Baleadeira enviuvece, e passados alguns anos propõe casamento a Glorita.
O casamento se realiza no Rio de Janeiro, tendo ela acrescentado o sobrenome Montes, sem retirar o Portugal.
Posteriormente ficará viúva de novo, retornando agora a Aracaju, onde viveu muitos anos cercada da alegria dos seus familiares e amigos.
Glorita nunca parou de ensinar. Sou um dos seus derradeiros alunos.
Lembro das tardes em que juntos líamos traduzindo e analisando os clássicos franceses. Desde os mais antigos como Corneille e Racine, passando pelas graças de Molière, enveredando nas crenças de Chateaubriand, desvendando as incertezas com Renan, perquirindo o pensamento de Voltaire, vivendo a história viva de Michelet, discutindo o político com Tocqueville, mergulhando no sempre juvenil Dumas pai, cantando o amor e o sofrimento das cortesãs com Dumas Fils, os costumes com Balsac, o vigor marcante e as contemplações de Hugo, o tempo perdido de Proust, as angústias de Sagan e Anatole France, as ternuras de Bourin, as denúncias de Zola, os enovelos de Yourcenar.
Enfim, era um curso de francês que não existe nas escolas. Excelente! E tudo de graça, o que era melhor ainda, afinal Dona Glorita não era dessas pessoas que só se movimentam por dinheiro. Porque qualquer Professor bem sabe que dinheiro nem sempre tudo paga, sobretudo uma aula de ternura, de carinho e de simplicidade.
Para terminar esta homenagem em despedida que se alonga, desejo trazer para este tema as próprias palavras com que Professora Glorita homenageou a escritora Madame de Sévigné em sua tese de concurso para a cátedra do Atheneu.
“Madame de Sévigné (Professora Glorita Portugal), a senhora preencheu todas as qualidades que se pode exigir de uma mestra cujo mérito está a desafiar o seu tempo, e o tempo que segue além sempre em frente. A senhora foi antes de tudo, uma mulher, uma mãe. E as mulheres, as mães e as professoras sempre irão existir. Ficarão delas como fica da senhora, este valor moral que sempre andou colado ao seu valor intelectual. Sua vida será, pra todos que a conheceram e para todos nós que louvamos sua passagem entre nós, um exemplo de honestidade, meiguice e dulçor”.
Para concluir, vale repetir a dedicatória contida na sua tese de Professora Catedrática: É um testemunho dado por ela por toda vida, e vale bisar nas homenagens de suas exéquias.
São palavras ditas por ela cinquenta e sete anos passados, em lição de ternura, agradecimento e esperanças. “A meus filhos: Eglantina, Tornélia, Fortunato, Inácio, Fedro, Eglélia e Verbena. Eu sou feliz de ser, em face da sólida cultura de seu pai, um anão diante de um gigante; mas eu serei mais feliz ainda em ser, no futuro, um pequeno vermezinho comparada com vocês”.
Hoje, por certo, este desejo se estende a netos e bisnetos firmado como exemplo a prosseguir. E a nos todos seus amigos.