Emenda Constitucional n° 58 e número de vereadores – Parte Final

A grande controvérsia em torno da EC n° 58 decorreu da previsão de aplicação retroativa de seus novos comandos. De acordo com o Art. 3°, inciso I da EC n° 58, publicada no Diário Oficial na data de 24/09/2009, o novo regramento sobre o número de vereadores produz efeitos “a partir do processo eleitoral de 2008”. Efeitos retroativos, portanto.

 

O que se percebe é que, aparentemente, o Congresso Nacional pretendeu determinar, por via da Emenda Constitucional n° 58, que a aplicação dos seus novos comandos, onde implicou admissão de aumento do número de vagas nas Câmaras Municipais, retroagisse ao processo eleitoral de outubro de 2008, de modo tal a refazer todo o cálculo da eleição proporcional realizada, agora tomando por base o número maior de vagas em disputa, alterando então o resultado final, com sufrágio de vereadores eleitos que não o foram segundo as regras em vigor quando da votação popular.

 

E aí, a um só tempo, verifica-se a subversão de diversos princípios constitucionais, alguns deles cláusulas pétreas da Carta Republicana de 1988.

 

De início, registre-se que o Art. 16 da Constituição Federal prevê que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência”.

 

Trata-se de norma que possui o claro objetivo de garantir segurança jurídica ao processo político-eleitoral, evitando a ocorrência de casuísmos eleitorais, realizáveis conjunturalmente por maiorias eventuais em proveito próprio.  Assim, as regras das eleições deverão estar definidas e ser do conhecimento de todos os envolvidos no processo com antecedência mínima de um ano, para que tenham tempo suficiente para as necessárias adaptações e preparações políticas, jurídicas, técnicas e operacionais.  A norma do artigo 16 da Carta Magna é verdadeiro corolário do princípio da segurança jurídica, assegurado como direito fundamental (artigo 5º, caput), e que se coaduna com a defesa do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput) e da soberania popular (artigo 1º, parágrafo único), princípios fundamentais da organização política nacional.

 

Ora, se a lei eleitoral nova não se aplica às eleições que ocorram até um ano de sua vigência, com mais razão ainda não pode uma emenda à constituição pretender a aplicação retroativa de seus comandos.

 

Ao incidir sobre eleição já realizada, a EC n° 58 viola gravemente a norma do inciso XXXVI do Art. 5° da Constituição: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. O ato jurídico perfeito agredido pela EC n° 58 foi exatamente o processo eleitoral já realizado e concluído, não podendo ser alterado por determinação normativa posterior. Ressalte-se que a norma do inciso XXXVI do Art. 5°, em combinação com a norma do Art. 16, traduz garantia fundamental de segurança jurídica, sendo que a própria Constituição determina que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir … os direitos e garantias individuais” (Art. 60, § 4°, inciso IV).[1]

 

Além de tudo isso, pretender a aplicação retroativa dos novos comandos da EC n° 58 significa pretender conceder mandato eletivo por meio de norma jurídica e não por meio de votação popular, o que revela agressão significativa aos preceitos democráticos que constituem princípios fundamentais da República. Quando as eleições de 2008 foram realizadas, o povo elegeu e deu mandato a um número determinado de vereadores segundo as normas de composição e vagas então em vigor. Não pode uma norma posterior conferir mandato popular a quem o povo não conferiu.

 

Duas ações diretas de inconstitucionalidade já foram propostas contra o Art. 3°, inciso I da EC n° 58/2009. Essas duas ações, propostas pelo Procurador-Geral da República (ADI 4307) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 4310), questionam exatamente a retroatividade dos efeitos de uma emenda constitucional em relação a processo eleitoral já concluído. A Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha já deferira liminar, sustando, até julgamento de mérito, tais efeitos retroativos. Na sessão plenária da última quarta-feira (11/11/2009), o Plenário do STF referendou a medida liminar concedida pela Ministra Carmem Lúcia, vencido apenas o Ministro Eros Grau.

 

No voto da Ministra Carmem Lúcia, ficou expressamente consignado que a pretensão de aplicabilidade retroativa dos comandos da EC n° 58 viola substantivamente diversos princípios fundamentais da Constituição, tal como antes assinalado:

 

(…) O eleitor brasileiro foi às urnas em 5 de outubro de 2008 e elegeu Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores, seus representantes para prover os cargos de Chefia do Poder Executivo e membros do Poder Legislativo nos Municípios brasileiros. As eleições garantiram, na forma da legislação vigente e em perfeita consonância com o disposto na Constituição, o exercício da liberdade cidadã naquele pleito e o absoluto respeito ao que nele decidido. Os eleitos pelos cidadãos foram diplomados pela Justiça Eleitoral até 18.12.2008 (Resolução TSE n. 22.579) e tomaram posse em 2009, iniciando-se a atual legislatura.

A eleição é processo político aperfeiçoado segundo as normas jurídicas vigentes em sua preparação e em sua realização. As eleições de 2008 constituem, assim, processo político juridicamente perfeito. Guarda, pois, inteira coerência com a garantia de segurança jurídica que resguarda o ato jurídico perfeito, de modo expresso e imodificável até mesmo pela atuação do constituinte reformador (art. 5º, inc. XXVI, da Constituição).

E, note-se, que nem mesmo Emenda Constitucional pode sequer tender a abolir tal garantia (inc. IV do § 4º do art. 60 da Constituição do Brasil).

Os eleitos, diplomados e empossados vereadores, no número definido pela legislação eleitoral vigente segundo a previsão do art. 16 da Constituição do Brasil, compõem os órgãos legislativos municipais e estão em pleno exercício de suas atribuições.

(…)

O advento do inc. I do art. 3º da Emenda Constitucional n. 58/2009, segundo o qual aplicam-se as novas regras previstas em seu art. 1º “a partir do processo eleitoral de 2008…” mudaria, assim, processo eleitoral findo.

Observa o eminente Procurador-Geral da República que afrontado estaria, então, não apenas o princípio do devido processo eleitoral, mas também o da segurança jurídica.

Em efeito, a modificação do número de cargos em disputa para vereadores tem notória repercussão no sistema de representação proporcional (arts. 106, 107 e 109 do Código Eleitoral), atingindo candidatos naquele pleito de 2008, os eleitos, partidos políticos e, principalmente, instabilizando os eleitores, que foram às urnas,

acreditaram no Estado que, pela Justiça Eleitoral, proclamou os eleitos, promoveu a sua diplomação e validou a sua posse, ficando o eleitor sem saber ao certo o destino do seu voto e sem ter ciência de quem se elegeu e de quem não se elegeu. Os representados – cidadãos brasileiros e titulares do poder soberano, nos termos do art. 1º, I e parágrafo único, da Constituição – estão perdidos quanto ao que ocorreu, quanto aos votos dados, quanto, enfim, à legitimidade do processo ocorrido e que ele achou que já se tinha acabado. E recebe, agora, a notícia de que poderia não ter se findado. Nem ele sabe qual a conta lhe caberá ao final pagar, política e até mesmo financeiramente. Enfim, os cidadãos estão perplexos quanto ao que aconteceu antes e ao que está acontecendo agora. Sem ciência dos fatos

não há confiança nos atos das instituições. Sem confiança não há democracia. Até mesmo o princípio constitucional da moralidade política estaria posta em xeque.

(…)

Já se disse que o Brasil vive incerteza quanto ao futuro (o que é da vida), mas tem também insegurança quanto ao presente (o que precisa ser depurado para que as pessoas vivam com o conforto da certeza das coisas). O que é, entretanto, pior e incomum, parece que é ter como regular ter-se a incerteza quanto ao passado. A expressão normativa questionada põe em ênfase este dado: não seria dever do Estado, acatando a Constituição, que tem na segurança jurídica e no respeito incontornável e imodificável ao ato jurídico perfeito, garantir a certeza, pelo menos quanto ao passado e acabado, como é o processo eleitoral de 2008? E tanto foi devidamente respeitado, é o que indaga o eminente Procurador-Geral da República de modo bem fundamentado, pelo menos nesta análise inicial do processo.

 

Com esses robustos fundamentos jurídicos, o STF concedeu a medida liminar requerida e suspendeu a eficácia do inciso I do Art. 3° da EC n° 58, sustando a aplicação retroativa dos seus novos comandos relacionados ao número de vereadores por Câmaras Municipais, até o julgamento do mérito das ADIs 4307 e 4310. Pelo teor dos votos dos Ministros na apreciação da medida liminar, a tendência é mesmo que, no mérito, o inciso I do Art. 3° da EC n°58 seja declarado inconstitucional em definitivo.

 

Todavia, cabe relembrar que a Emenda Constitucional n° 58 devolveu às Câmaras Municipais a plena autonomia para a fixação do seu número de vereadores, dentro dos parâmetros por faixa populacional que estabelece. Isso porque retirou do inciso IV do Art. 29 da Constituição a menção à “proporcionalidade” entre o número de vereadores e a população do município, proporcionalidade que foi o principal fundamento jurídico para a fixação dos critérios matemáticos rigorosos expostos nas tabelas do voto do Relator do Caro “Mira Estrela”, Ministro Maurício Corrêa.

 

Essa plena autonomia pode ser exercida doravante, de modo a ser aplicada a tempo para as eleições municipais de outubro de 2012.

 

Para isso, é necessário que cada Câmara Municipal estabeleça, em sua Lei Orgânica, o número de vereadores de sua composição, observados os novos preceitos da EC n° 58, que apenas estabelece limites de vagas por faixas populacionais, conforme já anteriormente assinalado. E, se for vontade política autônoma da Câmara Municipal efetuar essa mudança, que o faça até no máximo setembro de 2011, sob pena de a mudança não se aplicar às eleições municipais de outubro de 2012, pelos mesmos fundamentos de segurança jurídica aqui expostos!

 

Novas Emendas Constitucionais

 

No dia 12.11.2009, foram publicadas no Diário Oficial três novas emendas à constituição, aprovadas pelo Congresso Nacional, e que entraram em vigor naquela mesma data.

 

A Emenda Constitucional n° 59 Acrescenta § 3º ao art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para reduzir, anualmente, a partir do exercício de 2009, o percentual da Desvinculação das Receitas da União incidente sobre os recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212 da Constituição Federal, dá nova redação aos incisos I e VII do art. 208, de forma a prever a obrigatoriedade do ensino de quatro a dezessete anos e ampliar a abrangência dos programas suplementares para todas as etapas da educação básica, e dá nova redação ao § 4º do art. 211 e ao § 3º do art. 212 e ao caput do art. 214, com a inserção neste dispositivo de inciso VI”.

 

A Emenda Constitucional n° 60 “Altera o art. 89 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para dispor sobre o quadro de servidores civis e militares do ex-Território Federal de Rondônia”.

 

Finalmente, a emenda constitucional n° 61 “Altera o art. 103-B da Constituição Federal, para modificar a composição do Conselho Nacional de Justiça.”. Acaba a exigência de idade mínima e máxima para Conselheiros do Conselho Nacional de Justiça (antes 35 e 66, respectivamente). O representante do STF no CNJ passa a ser obrigatoriamente o Presidente do STF (antes, o inciso I do Art. 103-B previa que faria parte do CNJ um Ministro do STF, indicado pelo próprio STF). É estabelecido expressamente que o Presidente do CNJ será sempre o Presidente do STF e, nas suas ausências e impedimentos, o CNJ será presidido pelo Vice-Presidente do STF (nova redação do § 1° do Art. 103-B). Por último, fica dispensada a nomeação pelo Presidente da República e aprovação pelo Senado Federal do Presidente do STF como membro do CNJ, exigência não dispensada para os demais membros do CNJ (nova redação do § 2° do Art. 103-B). Trata-se, sem dúvida, de “Emenda Peluso”, aprovada para o fim de possibilitar que o Ministro Cezar Peluso, que assumirá a Presidência do STF em abril do próximo ano, possa ser também membro do CNJ e seu Presidente. Isso porque o Ministro Cezar Peluso nasceu em setembro de 1942, e tem portanto 67 anos de idade; logo, sob as regras constitucionais anteriores, não poderia ser o representante do STF no CNJ, nem tampouco seu Presidente, por extrapolar a idade máxima de ingresso no CNJ.

 

 

O caso Cesare Battisti em julgamento pelo STF

 

O julgamento do caso Cesare Battisti será retomado pelo STF na sessão da tarde desta quarta-feira (18/11/09).

 

Na sessão da quinta-feira passada (12/11/09), o Ministro Dias Toffoli declarou-se impedido de atuar, por motivos pessoais (o que já havia sido feito também pelo Ministro Celso de Mello), e o Ministro Marco Aurélio proferiu seu voto-vista, julgando improcedente o pedido de extradição.

 

Assim, o julgamento está empatado: quatro votos a favor do deferimento da extradição (Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski, Carlos Britto e Ellen Gracie) e quatro votos pelo indeferimento da extradição (Carmem Lúcia, Eros Grau, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio).

 

Nos bastidores, a expectativa é a de que o voto de desempate do Ministro Gilmar Mendes seja a favor do deferimento da extradição.

A polêmica que se anuncia é de outra natureza. A jurisprudência atual do próprio STF é no sentido de que cabe ao Presidente da República, exclusivamente, a decisão final sobre a entrega ou não de pessoa cuja extradição foi autorizada pelo STF. Em se tratando de decisão soberana do Estado Brasileiro, no que concerne ao seu relacionamento internacional, tal decisão seria juízo privativo do Presidente da República, e o STF apenas teria competência para autorizar a extradição, mas não para ordená-la. Há um ensaio de mudança dessa jurisprudência. Em tempos de ativismo judicial intenso (em especial do STF, sob a Presidência do Ministro Gilmar Mendes), não duvido que seja modificada a antiga jurisprudência. Isso muito embora o Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, já tenha publicamente anunciado que se limitará a dar executoriedade ao que o STF decida.

 

O tema (asilo político, refúgio) foi objeto de comentários nossos no início do ano, em especial na coluna de 21/01/2009: https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=81776&titulo=mauriciomonteiro.



[1] Por esses mesmos fundamentos, o STF julgou inconstitucional a EC n° 52, de 08 de março de 2006, para impedir a aplicação de seus novos comandos (plena autonomia dos partidos políticos para definição de suas coligações, acabando com a chamada “verticalização”) à eleição que se realizaria em outubro de 2006, a menos de ano, portanto:

 

“A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. <16> da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 12-2-93). Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 18-3-94), o art. <16> representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e ‘a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral’ (ADI 3.345, Rel. Min. Celso de Mello). Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. <16> ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). A modificação no texto do art. <16> pela EC 4/93 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/06 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua vigência.” (ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 22-3-06, Plenário, DJ de 10-8-06)

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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