Ensaio sobre o animalesco

Parece que perdemos o nexo de existir. Os poucos que ainda resistem se comovem com o muito que a vida apresenta. Quanta coisa. Existem situações que colocam nossas bases no chão. Ficamos mais animalescos e menos humanos. Os grotescos que nos rodeiam ficam por tempo indeterminado. Nos fazem pequenos e infelizes. Não, não gosto do feio – do ponto de vista que me aproxima da normalidade. Do achar que tudo é assim mesmo. O feio não é alguém, nunca será, mas sim, a verdadeira natureza moderna que nos transforma em coisas também. Dizem que nascemos bons, mas nascemos neutros.

A quem eu devo culpa? Deus? É claro que existe sempre alguém que tem que aguentar o fardo da vida ruim para que o outro goze do conforto. Essa é a lei suja de pensamento pequeno que aprendemos constantemente. Se uma situação constrangedora acontece quem devemos culpar? Sim, porque em tudo existe o seu autor: Nós, seres humanos! Bicho. Responsáveis pela dor alheia que deveria comover e não divertir. Pensantes? Sensíveis? Desconfio muitas vezes que não!

Convivo diariamente com o casual, horrendo do outro que me complementa, no melhor e no pior do que eu sou. Parece que precisamos da desgraça para fazer parte do todo, pertencer a algum grupo. Social. A maldade que nos cerca condiz com nosso cotidiano de forma sublime. Achamos tudo engraçado e somo coniventes porque assim esquecemos a nossa própria vida. Eu (Jaime) sofro por observar o escárnio do outro e me enxergar nele. Me dói não saber como ajudar. Me dói não querer ajudar muitas vezes. Não sou bom, não sou mal. Apenas luto para me manter digno conscientemente. Fico em transe diante do mal. Tento escapar, mas não consigo.

A última vez que me senti pequeno e suscetível ao outro, eu estava sentado em um dos meus trabalhos lendo os jornais diários quando me deparei com a matéria da jornalista Luana Luduvice, que trazia no título: “Bebê morre em casa e pai peregrina com o corpo”. Fiquei mudo. No canto de minha mesa sem piscar. Chorei. Não tenho como negar nada.

Não tive pai presente, algumas representações da figura paterna, mas ali quieto fui o pai de Kauanne Vitória (apenas um nome para me mudar durante vários dias), de apenas um mês e 15 dias, morta, arroxeada, enrola numa manta rosa e num saco plástico. Sozinha e sendo carregada por um pai desesperado que não sabia para quem apelar. Lutar por vida já não dava mais. Querer uma resposta sobre a causa-morte é um direito garantido. Madrugada. Espera de quase 6h por uma resposta. Esse tempo inteiro com ela nos braços. Pouco peso. Muita perplexidade.

No Hospital Nestor Pivas quatro horas para receber um lado escrito comprovando a morte. Insuficiente e sem mais. Era sabido, Kauanne já estava gelada. Era sentida assim. Seu corpo, pequeno, ainda percorreria um mundo na terra bem pior do que o imaginado. Próxima parada na Maternidade Hildete Falcão. Nada demais. Tudo de menos. Nenhuma ajuda e uma indicação para a o Instituto Médico Legal. Quase 9h da manhã. Ela tinha morrido por volta das 3h30. Jornalistas ajudando.

Um pai desgastado pela vida ruim das últimas horas. Uma menção do IML para que fosse prestado um boletim de ocorrência. Ocorrência um caralho! Um filho morto não é um trapo, um pano de chita. Kauanne estava enrolada num manto rosa (já disse isso) e num saco de plástico azul, desses de um litro (faltava esse complemento, o azul). Uma dor. Dó. Os próprios jornalistas ajudaram seu pai chegar até uma delegacia próxima. A queixa prestada e ainda por cima uma possível acusação pela morte. Avisaram no IML.

Mas que tipo de pai seria capaz de matar um filho e sair percorrendo vários hospitais e um IML e uma delegacia querendo explicação? Claro que não existia culpado ali. Era apenas um homem desesperado para honrar pelo menos as últimas horas em que Kauanne estava entre nós. Mas era apenas um corpinho morto? Sim, mas era um filho! Ele queria saber, lutou para isso. Foi morte natural. Ela não conseguiu respirar enquanto dormia, foi constatado depois de muito tempo esperando. Kauanne foi enterrada.

Em que ponto chegamos?! O que eu sou perante isso tudo? Um leitor? Um telespectador do nada? Não, nada justifica essa vida que nos força a contrastar com o acaso. Não se trata de modismo, heroísmo, heroína. A morte de Kauanne foi um ponto de atrito no meu ego massageado. Cada quilômetro percorrido pelo pai se transformou em sentimento por essa família, que não cheguei a conhecer. Ainda assim, sofri junto. Horas passadas (porque jornal já sai defasado do acontecido). Kauanne Vitória perdeu a chance de calar o animalesco. Ela foi engolida pelo cotidiano. Eu estou sendo, mas, não estou satisfeito!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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