Ensaio sobre o trauma

Os traumas preenchem o vazio da personalidade em formação. Por isso são importantes. Temos que ter cuidado na hora de lidar com eles ou tentar esquecê-los. Primeiro, que trabalhando cada percalço conseguimos trilhar melhor certos caminhos. Um traumatizado consciente sabe se sair de situações desagradáveis. De forma bonita. Segundo, não é esquecendo a coisa em si que ela sumirá. O que existe já é fixo, pertence a cada um de nós.

 

Não se trata aqui de julgar o caráter do trauma: bom ou ruim. Crescer exige que o ser humano tenha por obrigação alguns traumas. A vida sem eles não existiria da forma que a conhecemos. O fundamento dos nossos pensamentos está baseado nos traumas que foram se formando ao longo da estrada. Na infância, o trauma pode significar que ali chegamos num abismo onde só poderemos contar com nossa própria força para ultrapassá-lo. E mesmo que haja colaboração de outras pessoas, seremos os donos de algo que dependendo da situação será eterno.

 

Ter uma mãe que fuma desde os 14 anos, algo que me fez nascer com problemas respiratórios, apesar de gostar do cheiro do cigarro apagado por lembrar dela, não chega a ser um grande trauma. Porém por mais que eu tente não consigo tragar um cigarro sequer. Não sei esse gosto. É como se ainda sendo um embrião já tivesse estabelecido que aquilo não seria legal. Não sei se existe essa questão do feto registrar o externo, mas como estávamos interligados acabei assim. Por consequência ou inconsequência de nossos pais e familiares já nascemos com alguma carga traumática.

 

Pensando esses dias sobre este caso, concluí que minha mãe me proporcionou dois traumas indiretos e incontroláveis.  Apesar de saber que cigarro não é sinônimo de saúde, jamais sentirei seus efeitos diretos, o que me leva a ter certeza que não nasci para fumar mesmo. Minha mãe me tirou essa possibilidade e com isso a chance de tragar outras substâncias. O segundo diz respeito ao meu tempo de tolerância a lugares fechados, onde o uso de cigarro é permitido. Se não tiver uma área externa, a fumaça me incomoda tanto que preciso ir embora mais cedo de certas festas. O trauma de sentir o cheiro de vários cigarros acesos me traz a lembrança de algo sufocante. Acho que na época de embrião, meu cérebro deve ter registrado o cigarro como algo materno, gostoso, porém pesado e asfixiante. Gosto de lugares fechados e com fumaça ate certo ponto. Só me permito isso de vez em quando. Obrigado, mãe.

 

Daí quando o assunto trauma veio à tona numa conversa com alguns amigos, fiquei sabendo que conheço uma amiga que não consegue pronunciar a frase: “Incrível Hulk”. Qualquer menção ao homem esverdeado é logo banida de suas conversas. Mesmo sendo algo cômico, pra quem observa de fora, um trauma simples aos olhos de seu dono pode se tornar um mostro tão ou mais devastador que o Hulk, quando está irado.

 

Essa minha amiga me confidenciou que durante a exibição da séria (isso lá pelo início da década de 80), uma babá que tinha sido contratada para cuidar dela, a obrigava ficar sentada vendo o seriado do começo ao fim, como forma de castigo. Até hoje, Verônica não gosta de olhar para a imagem que remete ao seriado. Desconfio até que o simples desenho, numa lancheira escolar, lhe traga péssimas lembranças. O Hulk de Verônica estar relacionado à obrigação de algo que ela não queria fazer, ficar sentada (quieta), por exemplo. Mas após pensar sobre minha mãe, acho também que de analisando de forma fria, minha amiga poderá encontrar raízes na falta que sua mãe lhe fazia, deixando-a para ser cuidada pela tal babá monstruosa. A falta dos pais em Verônica significava o Hulk da TV.

 

Assim, concluo que o trauma é pessoal e intransferível. O que marcou alguém jamais servirá de influência para outra pessoa. Deveríamos ter mais orgulho de nossos traumas porque assim desmistificaríamos isso de que é precisamos de acompanhamento clínico para ajudar. Claro, que determinados casos são mais bem entendidos e diluídos com um psicólogo ou um psiquiatra, mas os dos cotidianos deveriam servir de inspiração, quem sabe motivação. O trauma permite que caíamos em pé, como gatos. Se já sabemos como proceder em determinadas situações, por que temê-los e não acatá-los?

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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