Entre poeiras e doideiras.

Quando sentei diante do teclado não me vinha nada na cabeça para escrever. Venho assim há algum tempo. Estou de mudança, saindo de uma casa para um apartamento.

Mas, quem disse que basta comprar um apartamento novo e tudo já vem prontinho. Que nada! O apartamento vem no osso, quase sem nada. Até as instalações de água e esgoto, as redes elétricas e telemáticas, é preciso conferir para ver se um fio não está cortado, uma tubulação entupida sem permitir a vazão dos fluidos, ou empesteando o ambiente com refluxos indesejáveis.

Afora isso é preciso imaginar a disposição das luminárias, dos móveis, da cozinha, do lavabo, enfim, tudo aquilo que exige a opinião e a contratação de um arquiteto de interiores.

E os arquitetos de interiores, regra geral, têm uma visão imediatista; melhor é comprar e encomendar tudo novo, dentro daquela premissa que o cliente não deve se apegar ao passado, como se ao habitar uma nova residência, se metamorfoseasse uma mudança radical em sua vida.

Esquecem os decoradores que algumas pessoas são uma espécie de cavalo chotão, resistente à brida, teimando por não amaciar o passo, exibindo passada desconjuntada e incômoda, mesmo bem ferido na espora.

E eu sou uma espécie destes cavalos de má passada, nascido mais para tração que montaria.

Ora, para quem entende de cavalo, uma vez chotão, eis igual para sempre, embora troque de muda e de dente.

E assim eu não consigo me modificar só porque com os meus dentes se erodindo sem promessa de nova muda dental, estou me mudando de residência, transplantado de uma casa para um apartamento.

Devo dizer que resisti bastante à mudança, afinal moro confortavelmente na mesma casa há trinta e seis anos, e não haveria necessidade de deixá-la, porquanto ao longo dos anos fui lhe abastecendo com os equipamentos necessários; uma churrasqueira, uma biblioteca silenciosa e bem sortida, uma piscina de bom tamanho e excelente profundidade, tudo o que eu gosto e preservo.

Mas os tempos estão mudando. A rua que eu dizia ser só minha porque ali não morava quase ninguém quando cheguei, está se tornando uma região comercial. E assim já estou com dificuldade de tudo, até de estacionamento.

Tenho até, em desafio de segurança, que bem conviver com a cara feia dos pastoradores de carro; não querem que eu estacione nem na frente de minha casa sem lhe pagar um real.

Assim resolvemos nos mudar: Tereza, eu e Odilon Junior, o único filho que mora conosco.

A escolha do apartamento foi um processo longo, afinal se a churrasqueira e a piscina podiam ser dispensadas, a nova moradia estaria condicionada a possuir um espaço que comportasse parte da minha biblioteca.

Infelizmente os edifícios têm espaço para saunas, salas de musculação e massagem, al furo ou al fureau que não sei para que servem, banheira jacuzzi, quadra de esporte e nenhum espaço destinado a uma biblioteca ou uma sala de estudo.

Há espaço para latrinas em todos os quartos, home teater, o escambau, e nenhuma área para uma estante de livro.

Como é triste uma casa sem livros! Só há uma coisa pior que uma casa sem livros; uma casa sem criança.

Mas uma casa sem criança pode ser uma contingência da vida ou do passar da vida, e uma casa sem livro é bom repetir Cícero e Tucidides por eternos: “uma casa sem livro é como um corpo sem alma”

Mas os decoradores e arquitetos colocam o livro em último lugar, um apêndice; deslocado e incômodo. Quando concebem um espaço destinado a algum livro, o fazem para poucos livros, e livros que não merecem nem ser lidos, nem relidos, afinal o que lhes interessa é o adorno e não o conteúdo.

Será um sinal dos tempos cada vez mais crescentes em ignorância, neste mundo utilitarista a exaustão?

Sim, porque não creio ainda que o futuro chegou e as livrarias sebo são tão inúteis quanto as bibliotecas. Não me venham dizer por hora que a ausência de livros já se explica com a internet eliminando os livros, com o Dr Google resolvendo virtualmente tudo.

É verdade! Futuramente, sem manusear um único exemplar, todos teremos uma biblioteca maior que aquela queimada em Alexandria, bastando só um clique preguiçoso nos nossos PCs e Notebook. Mas, enquanto não chega este tempo, acho que posso continuar a ler e colecionar bons livros.

Assim o grande dilema de minha mudança da casa para um apartamento era o que fazer com os meus livros, alfarrábios e velharias, observados com nojo e desprezo. Uma aversão também aos meus móveis clássicos de jacarandá e madeira nobre, que alguns consultores abominaram e os queriam pintar em pátina ou permutados por outros novos, sobretudo de marca famosa.

Ah Molière: Chaque temps avec son bourgois gentilhomme! Se há muitos conselhos deste tipo, é porque em cada tempo existe sempre muita figura como o Monsieur Jordain, o ridículo burguês fidalgo imaginado por Molière.

De forma que, rejeitando doutas consultorias bourgeoises, destes descabeçados tempos, estou levando a minha velharia toda, a começar por mim e por minha mulher, que é a mesma há trinta e seis anos. E que pretendo continuar a conservar, por ser a graça que preciso ter no meu existir, sobretudo no apartamento novo

Mas, que está um sufoco escrever em meio a poeiras e doideiras de mudança. Está terrível!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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