Epifânio Dória As civilizações ágrafes têm na memória a base de suas culturas. Há uma partilha universalizada, como coubesse a cada um membro comunitário um quinhão de conhecimento e de sabedoria. As sociedades letradas, ao contrário, são seletivas, fazendo dos mais diferentes suportes – livros, revistas, jornais, outras publicações – o lastro comum, ao qual todos devem acorrer, na luta da aprendizagem. Considerando as altas taxas de analfabetismo, e os baixos índices de leituras, não surpreende que a ignorância campeie solta, renegando ao esquecimento parte da vida construída no cotidiano das pessoas e dos grupos sociais. Mesmo tendo vivido longamente, 92 anos (nasceu em 1884, morreu em 1976), e ocupado posições destacadas como jornalista, pesquisador, e especialmente documentarista, Epifânio Dória não tem seus méritos exaltados e sequer é bem lembrado pelos sergipanos. Suas colunas de Efemérides Sergipanas, ajudando a construir biografias com informações preciosas, selecionadas por uma pesquisa cuidadosa, amarelaram nas páginas dos jornais, ou se perderam com eles, inapelavelmente. Seus Catálogos, organizados em cada uma das instituições a que serviu, foi abandonado, sem que houvesse melhoria na localização dos textos para a pesquisa. Seu zelo pelo levantamento de dados pessoais de vultos sergipanos, residentes no Estado ou fora dele, não fez escola, não deixou discípulos, ainda que fosse um dos mais eficazes meios de guardar memória. Epifânio Dória não é exemplo único na galeria dos esquecidos. Clodomir Silva, que viveu apenas 40 anos, mas que foi professor, folclorista, jornalista e político, autor do monumental Álbum de Sergipe, que nem tem seu nome, e de Minha Gente, recentemente reeditado pela Funcaju, é outro injustiçado. Nem os professores e alunos do velho Atheneu, onde ele fez brilhar a sua inteligência, sabem dele. É comprida a lista dos intelectuais que mesmo deixando obras importantes, não são lembrados hoje. Nomes como os de Carvalho Neto, Manoel dos Passos de Oliveira Teles, Florentino Menezes, Prado Sampaio, Elias Montalvão, Carvalho Lima Júnior, Magalhães Carneiro, Ávila Lima, Costa filho, Freire Ribeiro, Artur Fortes, estão mergulhados, com tantos outros, nas brumas do esquecimento. O desmemoriamento das populações não tem medida, como se pode observar nos resultados de uma enquete, feita pelo Portal InfoNet, a respeito de Epifânio Dória. A InfoNet perguntou qual era a profissão de Epifânio Dória e sugeriu a múltipla escolha: Advogado, Engenheiro, Médico, Documentarista. O resultado foi o seguinte: Advogado – 40,96%, Engenheiro – 28,92%, Médico – 13,25% e Documentarista – 16,87%. Ou seja, 83,13% desconhecem a formação profissional do velho bibliófilo, apenas 16,87% souberam responder qual era a verdadeira profissão de Epifânio Dória. O resultado encerra um eloqüente exemplo de desconhecimento cultural. Afinal, Epifânio Dória morreu há menos de 30 anos, depois de exercer enorme presença na vida sergipana, e de ter seu nome fixado na fachada da Biblioteca Pública, com PH e tudo, que é uma casa bem freqüentada pelas gerações de estudantes. A despretenciosa enquete da InfoNet termina por preocupar ainda mais os que se esforçam, por todos os modos, para adornar Sergipe com a arte e a cultura dos seus filhos. Em Sergipe algumas entidades culturais mantém vivos nomes consagrados da literatura, da história, da cultura em geral. São exemplos o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, fundado em 1912, a Academia Sergipana de Letras, fundada em 1929, que se mantém vivas, diblando todas as dificuldades. As escolas, das diversas redes, tratam muito pouco das coisas locais, ainda que existam duas disciplinas – Sociedade e Cultura, para o Ensino Fundamental, e Cultura Sergipana, para o Nível Médio – como veículos de circulação de conhecimento sergipano. A Universidade Federal de Sergipe tem, atualmente, muita gente pesquisando e escrevendo monografias, dissertações, teses, livros com temática ambientada no cenário sergipano. As outras ainda não galgaram a mesma posição da UFS, tendo o local como um acessório. Falta, ainda, um Guia de Fontes, para orientar os estudos e incorporar a bibliografia produzida ao longo do tempo. É claro que o quadro já foi pior. Houve tempo que poucos ousavam falar em literatura, em arte e em cultura sergipana. Os olhos, os ouvidos e os aplausos estavam fixos na cultura importada, fosse de onde fosse, enfeitada como gênero de primeira necessidade e de inquestionável qualidade. O tempo tem ensinado que as coisas não funcionam bem assim. Sergipe já tem quadros intelectuais, aqui residentes, que romperam as fronteiras e levaram seus nomes para convívios nacionais e internacionais. A máxima (ou praga) de que Santo de casa não faz milagres não pode prosperar entre os mais jovens, para não afetar a auto estima, essa propriedade de valorização do que é próprio, que deve ser estimulada. Quem vence a ignorância é a cultura, a começar pela informação, pela ampliação do conhecimento, pela reflexão do saber. Saber da profissão de um intelectual, como Epifânio Dória, é importante, porque ele escolheu para exercer, uma atividade sensível, de preservar bens de cultura que devem ser utilizados pela sociedade.
Mais do que organizar instituições de cultura – Biblioteca Pública, Arquivo Público, Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Arquivo da Maçonaria – catalogando acervos, documentar a vida sergipana, defender o porte gratuito para a circulação nacional de livros, revistas e jornais, Epifânio Dória tinha a noção exata do papel das bibliotecas nas sociedades. como sabia fazer a crítica, com textos claros: “Com pesar, entretanto, venho notando que os homens de Governo, em geral, relegam as bibliotecas a um plano muito secundário, como se elas não desempenhassem o papel relevante que desempenham na obra da civilização.” A constatação, feita há quase 90 anos (em 1915) guarda a triste atualidade e pode ser novamente citada, para fixar, no tempo, o descaso e seus múltiplos e perniciosos efeitos.
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