Estatuto das Guardas Municipais – Parte I

Entrou em vigor na data de 11/08/2014 o “Estatuto das Guardas Municipais”, instituído pela Lei n° 13.022, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidenta da República.

Abordaremos neste espaço da Infonet algumas questões relativas a esse novo diploma legal, inclusive controvérsias quanto à constitucionalidade de algumas de suas disposições, a começar pela própria (in)competência da União para legislar sobre alguns aspectos da matéria.

Nesta primeira parte, pretendemos abordar que a necessária interpretação da Lei n° 13.022/2014 deve partir do pressuposto de qual é o papel constitucionalmente reservado às guardas municipais, tratadas como possibilidade de atuação dos Municípios na segurança pública.

Com efeito, sobre segurança pública, a Constituição da República reserva um capítulo específico, estabelecendo-a como direito de todos e dever do Estado, bem como fixando as suas finalidades: preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (Art. 144).

Mais ainda, nesse mesmo capítulo, são definidos os órgãos da segurança pública e, por essa via, o papel constitucional da cada esfera federativa.

São órgãos da segurança pública: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis e polícias militares e corpos de bombeiros militares (Art. 144, inciso I a V). Polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, são, evidentemente, órgãos da União, enquanto polícias civis e polícias militares e corpos de bombeiros militares são órgãos dos estados federados. Os parágrafos primeiro, segundo e terceiro do Art. 144 dispõem, respectivamente, sobre as atribuições da polícia federal, da polícia rodoviária federal e da polícia ferroviária federal, enquanto os parágrafos quinto e sexto dispõem, respectivamente, sobre as atribuições das polícias civis e das polícias militares e corpos de bombeiros militares.

A polícia ostensiva e a preservação da ordem pública são áreas fundamentais da segurança pública reservadas pela Constituição precipuamente às polícias militares (Art. 144, § 5°), cabendo também à polícia rodoviária federal o patrulhamento ostensivo das rodovias federais (Art. 144, § 2°), bem como à polícia ferroviária federal o patrulhamento ostensivo das ferrovias federais (Art. 144, § 3°); também  pode ser constatada referência ao policiamento ostensivo da polícia federal, no sentido de exercer atribuição de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras (Art. 144, § 1°, inciso III), bem como sua atribuição de prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (Art. 144, § 1°, inciso II).

Observa-se portanto que a segurança pública, no que se refere à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, é atribuição da União e dos Estados, por meio de suas respectivas polícias.

Nesse quadro, qual é o papel reservado pela Constituição às guardas municipais?

De acordo com o § 8º do mesmo Art. 144, os Municípios podem constituir guardas municipais, “destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.

Noutras palavras, se segurança pública compreende também a preservação da incolumidade do patrimônio, o único papel constitucionalmente reservado às guardas municipais é o de atuação com vistas à proteção do patrimônio público municipal, não cabendo às guardas municipais atuação de policiamento ostensivo voltado à preservação da incolumidade das pessoas e do patrimônio particular.

Guardas municipais, então, não são polícia, e, se criadas pelos Municípios, não devem ter a sua atuação confundida com a das polícias (federal e estaduais).

Todavia, a crescente demanda social por segurança pública eficiente, em face do aumento considerável da criminalidade e da violência, faz com que diversos Municípios desvirtuem (por determinação legal inconstitucional ou por singela determinação de fato) as finalidades de suas guardas municipais, reservando-a para uma atuação policial, para a qual no mais das vezes não estão suficientemente preparadas nem tampouco equipadas.

Embora compreensível a apreensão de Chefes de Executivos Municipais diante do quadro muitas vezes aterrorizante da violência e criminalidade nas respectivas cidades, assim como compreensível também a cobrança que cidadãos fazem para que as guardas municipais atuem como polícias, o fato é que não foi esse o pacto federativo determinado pela Constituição.

Para além de representar um desvirtuamento do papel constitucional das guardas municipais, a sua atuação como se polícia fosse onera os Municípios sem a devida contrapartida, impõe aos seus membros sobrecarga de serviços e responsabilidades e desvia da sociedade a contínua cobrança que deve efetuar, sobretudo dos Estados, do oferecimento de segurança pública com policiamento ostensivo mais presente, numeroso e eficaz.

Ou, então, que a matéria seja repactuada e a Constituição devidamente emendada, para atribuir também às guardas municipais a função do policiamento ostensivo e atuação com vistas à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas (particularmente, sou contrário, mas defendo a legitimidade do debate sobre o assunto). Proposta de emenda nesse sentido, aliás, já foi apresentada no Congresso Nacional.

Recente emenda constitucional (EC n° 82, de 16 de julho de 2014) acrescentou ao Art. 144 o § 10°, mas para tratar da segurança viária “exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas”, compreendendo a “educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente” e definindo competir “no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei”.

O papel constitucional das guardas municipais não foi aí alterado, é o que nos parece, pois a competência para realizar a “segurança viária” continua sendo dos órgãos executivos e seus agentes de trânsito no âmbito de cada qual dos entes federativos – incluídos os Municípios. E os agentes de trânsito, no âmbito do Município, não são as guardas municipais, que possuem outra finalidade constitucional.

Portanto, a premissa com a qual trabalharemos a análise do “Estatuto das Guardas Municipais” permanece incólume: o único papel constitucionalmente reservado às guardas municipais é o de atuação com vistas à proteção do patrimônio público municipal, não cabendo às guardas municipais atuação de policiamento ostensivo voltado à preservação da incolumidade das pessoas e do patrimônio particular.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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