Facínoras

O episódio que culminou com a morte de Hosano de Jesus, não pode ser mais um que passará aos olhos grossos do Estado, responsável pela sua tutela, enquanto preso numa delegacia de parede frias e mofadas  em Pedrinhas, distante 90 quilômetros da capital. Cabe a mim sim discutir como se prende um devedor de pensão alimentícia junto com bandidos perigosos, numa delegacia que não tem a mínima estrutura. O Estado é negligente, conduz a morte como se fosse um acidente de percurso, supondo que isso acontece. Isso acontece? Não há, por parte da justiça, mesmo entregue o caso ao Ministério Público Estadual maneiras de impor condições severas para que presos não sejam amotinados ou mesmo supostos bandidos, agregados a traficantes, ladrões, latrocidas perigosos.

Ninguém sabe o montante de dinheiro que o Estado de Sergipe libera todo mês para a Secretaria de Estado da Segurança Pública e o porquê as delegacias continuam em petição de miséria, algumas como o caso da de Pedrinhas, com dois policiais apenas, que no momento do crime,foram atender uma diligência. O caso da morte de Hosano compactua com a justiça que solta criminosos à sangue frio, lembrando o romance de Truman Capote “A sangue frio”, que conta a história da morte de toda a família Clutter, em Holcomb, Kansas, e dos autores da chacina. Capote decidiu escrever sobre o assunto ao ler no jornal a notícia do assassinato da família. São pessoas que atiram na cabeça de outras, mantém condições de legalidade recebendo o salário do Estado e ainda interpõem o papel de vítima no horror que se dispuseram em usar a Lei como justificativa de suas atrocidades.

Hosano de Jesus, preso por uma falta de pagamento de pensão alimentícia, o que é por demais discutível, foi tratado como meliante qualquer, colocado num cubículo de vermes, enquanto o Estado parece apenas lamentar.  Os familiares garantem que o detento foi morto com golpes de faca e o suspeito, um companheiro de cela, teria sido obrigado a lavar a cela para retirar o sangue. O crime gerou revolta. A família informa que o crime aconteceu no domingo e, no momento, a Delegacia de Polícia da cidade estava fechada, sem policiais e sem funcionários.

Passado este imbróglio, de justificativas, conversa fiada e vítimas e culpados, o Estado, que mantém a tutela do preso,  deve pautar o problema prisional e colocá-lo  no centro das políticas públicas. O Estado deve ser aquilo que o cidadão precisa que ele seja. E, isso tem que ser um movimento que não é só de um partido: pode ser de vários partidos e movimentos da sociedade civil que pressionem essa mudança. I sso significa que os presos são responsabilidade do Estado  (estão sob a tutela do Estado), e que se o Estado não tomar os cuidados devidos e alguma coisa acontecer com o ‘tutelado’ enquanto ele estiver preso, o Estado é responsável.

Fac-símili, falando as mesmas coisas para ouvidos surdos e corações vazios.O episódio de Pedrinhas nos revela que agimos como facínoras. Que é apenas mais um sinistro a morte de Hosano. Que não é com nossa família e que nada temos a fazer a não ser mandar uma coroa de flores para a família, que devia ser, se é que mandaram, devolvida. Este é o estado de coisas em que nos encontramos, servis e reféns de um tempo de “partido, homens partidos”, no dizer de Drummond. A forma escandalosa, reveladora e impactante como a morte de Hosano, nos devolve um sistema falido, remetendo-nos à época da barbárie, frutos que somos do egoísmo institucionalizado pela mídia do consumo, a perpetuação do poder dos políticos na fome voraz de se manterem no topo sempre, enquanto Hosanos perdem a vida em celas que não foram feitas para eles nem para ninguém.

Aproveito o ensaio da minha mestra Maria Lúcia Victor Barbosa para dizer com ela “ Está se vivendo a banalidade do mal, expressão da filósofa judia, Hannah Arendt, que tomo emprestado. Isto não é difícil de constatar, pois nessa época em que valores foram perdidos, os horrores da violência, da impiedade, da indiferença à vida, aumentaram substancialmente. Lideranças perniciosas manipulam a maioria incapaz de discernir sua própria ruína. Através de conceitos deturpados governos utilizam o “duplipensar”, termo criado por George Orwell em “1984”. Desse modo, despotismo passa por democracia. Populismo é visto como defesa dos interesses do povo. Arbitrariedades de toda espécie são apresentadas como exercício de soberania. Intoxicadas pela propaganda enganosa as massas louvam e cultuam personalidades equivocadas. Evolui no mundo o terrorismo que se alimenta do fanatismo religioso. Avoluma-se a corrupção nos meios governamentais e políticos estão se lixando para a opinião pública. Eles sabem que na verdade opinião pública inexiste. Mesmo porque, façam o que fizerem, são eleitos e reeleitos."

No meio desta selva escura que Dante cantou um dia, possuído de um sentimento profundo de piedade pela família e pela vítima, quero depositar aqui não a minha indignação porque esta palavra está muito gasta e não supera o mal. A minha lágrima por Hosano, que nunca conheci, mas que é o mártir deste tempo, doloroso tempo, tempo de “partido. De homens partidos.”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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