A cruz, com toda a sua simbologia, foi o primeiro elemento de contato entre os descobridores cristãos, e as povoações brasileiras. Fixada, artisticamente, nos grandes panos das caravelas, ou reproduzida em madeira de lei, para ser fincada no solo no momento da posse, para a celebração da missa, a cruz projetou-se no nome da terra, como uma espécie de Orago, em torno do qual a fé e a devoção irmanaram-se nos mesmos propósitos de controle da vida moral dos brasileiros. A cruz e os santos batizaram a terra com os nomes de Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruze deram a rios, serras, lugares os nomes santos de Antonio, de João e de Pedro, que mais que um ordenamento alfabético representavam interesses que serviram de ponte entre a tradição e a atualidade. Procissão de Santo Antônio chama muitos fiéis
Não custa lembrar o conflito de identidade vivido pelos religiosos, diante de grande multidão de seres que não descendiam de Sem, nem de Cam, nem de Jafé, os filhos de Noé, que segundo a Bíblia ajudaram o pai a repovoar o mundo destruído pelo dilúvio.
As refregas entre povos cristãos e povos islâmicos, que duraram aproximadamente oito séculos, levaram os mareantes de Espanha e de Portugal a contarem em suas frotas com alguns línguas, ou intérpretes, na suposição de que os árabes e judeus poderiam estar nos portos de destino. No Brasil não foi diferente, o língua precedeu Cabral e Caminha, no contato com os indígenas. 37 anos depois da descoberta do Brasil, uma Bula papal resolveu a questão, declarando que índio era gente, sendo gente tinha alma, e tendo alma deveria ser salvo, para a glória de Deus.
Uma cultura de salvação moldou as atividades dos europeus no Brasil, notadamente com o estabelecimento do Governo Geral, em 1549, e com a chegada dos primeiros jesuítas, destinados à catequese dos indígenas e dos negros africanos, que começavam a chegar da Guiné e de outras regiões, para o trabalho nas lavouras e criações. Um documento de época, – Tratado Descritivo do Brasil em 1587, de autoria de Gabriel Soares de Souza, retrata os indígenas da costa nordestina, com suas culturas. A Visitação da Bahia e de Pernambuco, entre 1592 e 1594, já compõe um retrato fiel da vida brasileira no século XVI, envolvendo no mesmo tablado da apresentação multiétnica, características singulares, mescladas pela tentativa de convivência, sob a égide de um estado livre, as Santidades. A leitura dos processos, mesmo que resumida, ensina sobre hábitos, costumes, crenças, devoções e fé. De um lado, a radicalidade e a unilateralidade dos religiosos encarregados da catequese e da redução dos indígenas e do monitoramento dos negros, de outro lado um corpus de crenças, muitas delas judaicas, formado ao livre estar de homens e mulheres que se aventuraram na travessia do grande mar oceano, para povoar a terra brasileira. Tomava feição social, pela leitura, pela identidade de crenças, e pela fusão dos grupos étnicos, uma comunidade culturalmente oposta aos acampamentos de colonos que ocupavam terras, dadas em Sesmarias. As Santidades, organizações sociais inspiradas no paraíso, tinham muito em comum com as cocanhas, que ainda hoje sobrevivem, com suas variantes, em muitas partes do País.
A fé, que conceitualmente tem o mesmo sentido de crença, acrescida, porém, da confiança do crente, foi estandartizada no Brasil colonial, através de Padroeiros em torno dos quais era reunida a população. Santo Antonio, São João e São Pedro são alguns dos Oragos populares no Brasil, com igrejas e capelas sob tais invocações, datas festivas, e devocionário popular. Cada um destes santos ganhou fisionomia cultural própria, com a qual é reconhecido, no íntimo da comunidade eclesial, como também na comunhão social mais ampla.
Há, no Brasil, um calendário anual de festas, com ciclos distintos, como o do mês de junho, ou ciclo junino, ou de São João, ou ciclo joanino. Pelo menos três grandes ciclos de festas populares atraem os brasileiros: o Natal, com início no dia de Nossa Senhora da Conceição, 8 de dezembro, concluído na festa de Santos Reis, 6 de janeiro, em alguns lugares vinculando-se a festa de São Benedito; o Carnaval, antes da quaresma, e a Micareme, depois do Sábado da Aleluia, incorporando esta data de queima do Judas; e o que reúne Santo Antonio, São João e São Pedro.
O ciclo junino tem três festas distintas, mas integradas: a de Santo Antonio, celebrada no dia 13 de junho, data de sua morte, em Pádua, na Itália, no ano de 1231, a de São João, no dia 24 de junho, data de nascimento do profeta, filho de Isabel e de Zacarias, e a de São Pedro, no dia 29 de junho, dia de sua morte, no ano 64. Em torno dos três santos a Igreja conciliou tradições que estão, ainda, incorporadas aos festejos do mês de junho, como o do culto agrário, tendo o milho como o alimento colhido na primeira quebra, ainda verde, para uso culinário. É um ciclo que funde religiosidade, fé, devoção, com o júbilo das pessoas, das famílias e das comunidades com a fartura dos anos de bons invernos. Um folclore típico formou-se em torno dos ciclos de festas, com uma complementaridade que confunde, muitas vezes, os intérpretes da cultura popular brasileira. Quadrilha é uma das manifestações juninas
O ciclo junino tem uma unidade fantástica, apesar das dificuldades para compreender o por que da Igreja reunir, num mesmo tempo de festas, três figuras diferentes do panteão dos santos do céu. O ciclo junino parece fazer a transição entre a vida rural, predominante em grande parte do território, e a vida urbana essencialmente consumidora em um mercado usuários conservadores de velhos hábitos, como forma de construir a identidade social. No culto junino os santos perdem, de algum modo, as suas qualidades individuais em favor do coletivo, o que faz da festa um compacto de fé e devoção, aureolado de atividades que realçam a importância do ciclo para a relação da Igreja com o povo. Uma relação de intimidade, que abarca a organização familiar e comunal, dando ênfase a uma certa unidade de pensamento e de submissão diante do mundo e da vida, que fluem tocados pelos mesmos sentimentos religiosos, de tempos remotos.
Os três santos de junho têm um parceiro na tradição, que é São José, comemorado no dia 19 de março. É no dia de São José que o sertanejo espera chuva, como sinal de um bom inverno e de uma boa safra de milho, garantia para uma grande e feliz festa. Convém não esquecer que São José, embora não sendo biologicamente o pai de Jesus, é o marido de Maria, integra a Sagrada Família.