Feliz Navidad

Com a proximidade do nosso Natal, Tereza começou a cantarolar, repetitivamente, aquela musiquinha do cantor porto-riquenho José Montserrate Feliciano García de refrão doce e continuado: “Feliz Navidad / Feliz Navidad / Feliz Navidad / Próspero año y felicidad”.

Este será o nosso 47º Natal juntos.

Um Natal diferente, sem luzes na varanda, sem árvore colorida, sem os três presépios, que costumo armar, o grande, o médio e o pequeno, não o fazendo neste 2020 perigoso, só porque perdi a vontade e os devaneios, entregando-me aos receios e aos freios que os cuidados impõem, evitando encontrar poeiras nas caixas onde as peças guardadas ficaram hibernando o ano inteiro, e não ousar asneiras de galgar escadas, nessa idade que nunca tive, para ligar gambiarras de tomadas, sem falar das mascaradas recomendadas e dos contatos proibidos evitando a ceia em família e até a Missa do Galo na Matriz.

Tudo evitando, só por receio da Covid, e porque esse negócio de subir, armar e trepar está me ficando difícil, muito difícil…

Dificuldades à parte, é bom dizer sobremodo, porque algumas coisas eu só gosto de fazer com Tereza, sem outras ajudas por complemento.

Assim, neste Natal, irão nos faltar a árvore, a iluminação e os três presépios.

Mas, por que três presépios?

Por idiossincrasia de ancianidade. E, por coleção de lembranças, ora essa!

Um vem por saudade de Dona Lourdes, minha mãe, que me ensinou a montá-los, num tempo em que plantávamos com grãos de arroz, ou milho-alpiste, pequenas caixetas para compor o cenário, como se fossem capinzinhos germinados, rodeando a paisagem campestre, onde carneirinhos pastavam próximos à manjedoura do Menino-Jesus.

Depois eu comprei um presépio grande que montava no jardim da nossa casa na Rua Laura Fontes.

E depois eu adquiri um outro, vindo da China, como tudo que agora importamos.

Em verdade, o meu desinteresse na montagem dos presépios tem outro componente também; a modernidade!

No ano passado, por exemplo, só um dos três filhos, Odilon Junior e Maíra, sua esposa, visitaram os meus presépios, os outros dois filhos passaram o Natal com os netos em visita a seus familiares, e no Ano Novo fomos, Tereza e eu, para Madrid e Lisboa, de modo que na nossa volta, o dia de Reis tinha passado, e já era tempo de recolher as peças.

Ficaram apenas as fotografias das minhas toscas lembranças.

Agora iremos todos mascarados nos comunicar via iPhone, afinal o Covid em tanta ameaça nos tirou qualquer vontade de enfeitar a casa e programar a ceia.

Mas, o Natal continua a ensejar este sentimento terno inerente à vida que se renova com o nascimento de um menino, o Deus-Menino que por “Mistério de Fé”, veio habitar entre os humanos.

Hoje tal  “Mistério de Fé” parece soar longínquo, distante da imagem do homem, que não se crê mais como filho de Deus, nem que o Filho de Deus houvesse sido encarnado no seio de Maria, aquela que se espantara perante o anjo que lhe falava de uma criança a conceber permanecendo em virgindade.

Nesse tempo de excessivas causas e efeitos, o homem só se vê miúdo perante a agonia e a miserabilidade da sua condição, de ainda conhecer pouco e não conseguir desvendar uma vacina que lhe elimine a dor e a fugacidade do seu existir.

E nessa existência, soa-lhe impossível o Natal, imaginar um Deus-Homem, enquanto Verbo-Encarnado, concebido no seio de uma Virgem.

Algo que o Presépio renova, enquanto cenário tosco, as luzes se fazendo estrela de esperança nos homens de boa vontade.

“Nasceu-nos um Menino!” É a vida que se renova!

Que haja paz no coração dos homens, nós todos imperfeitos, e todos acolhidos como filhos de Deus, enquanto Mistério de Fé.

Assim, ouço Tereza feliz, como criança cantando: “Feliz Navidad / Feliz Navidad / Feliz Navidad / Próspero año y felicidad”.

Uma canção apenas, resposta do homem à sua alegria, desejando ao outro, seu circunstante, um ano próspero em felicidade.

Mas, se o Natal lembra o pinheirinho, a bolinha colorida, o presente trocado e até um Papai Noel esdrúxulo por esverdeado, não o desvirtuemos tanto, porque há quem ache tudo isso uma coisa ruim, por capitalista e consumista, segregando quem tem do que não tem, o que é uma miséria!

E bota o que no lugar? O desamor, a desavença, e a sabença de condenar o Natal, porque o homem gosta mais de nele sorrir e cantar do que repartir e partilhar?

Que no Natal, nos lembremos do Padre, sobretudo agora quando mundo afora, por conta da Covid, nem os Padres podem amparar os seu fiéis nas Igrejas e Capelanias, por proibição do Estado.

Momento em que vale referir Don Paul Préaux, reitor da Comunidade de Saint-Martin em Évron, no coração de Mayenne, um dos seminários maiores da França, autor do ensaio, “Os sacerdotes, dom de Cristo pela humanidade” (Artège), nesses tempos sobremodo sombrios por gentios, quando “O papel dos sacerdotes se faz mais essencial do que nunca”.

Uma questão posta pelo Jornalista Ghislain de Montalembert em matéria do Le Figaro, em prévias de Natal, cuja entrevista bem vale transcrever:

G Montalembert“Não é às vezes desanimador ser um padre católico em uma sociedade que se descristianiza?”

Don Préaux –  “O sacerdote não é enviado ao mundo para convencer, mas para proclamar a palavra divina.  Nas epístolas de Paulo aos Coríntios está escrito: “Ai de mim se não proclamar a Cristo”.  Quando São Paulo estava escrevendo estas palavras, ele estava na prisão, acorrentado;  também em seu tempo, o sacerdócio era pesado de suportar!  Hoje, embora o papel dos sacerdotes nem sempre seja fácil, é mais essencial do que nunca.  Os sacerdotes são um presente de Cristo à humanidade.  Em tempos de crise, desespero e medo como os que vivemos, eles personificam confiança, misericórdia … e ternura.  Esta é uma palavra essencial que o Papa Francisco costuma usar.  A ternura começa no coração, passa pelos olhos, ouvidos, mãos … Testemunha um amor concreto, como o de Deus pelos homens.

G Montalembert  – Vinte e sete novos sacerdotes da comunidade de Saint-Martin serão ordenados em junho de 2021, após onze do ano passado.  Como explicar esse dinamismo vocacional?

Don PréauxO que representamos corresponde aos desejos espirituais dos jovens de hoje.  Eu recebo isso como um presente de Deus.  Nossa comunidade está experimentando um crescimento real, mas isso permanece relativo em relação às necessidades da Igreja hoje.  O que importa, porém, não são os números, mas a qualidade da formação e do acompanhamento que queremos dar a estes jovens para que se tornem bons sacerdotes e sejam sinais vivos da luz de Cristo.  .  É uma grande responsabilidade que nos foi confiada.

G Montalembert  – Como você treina bons padres?

 Don PréauxNossos seminaristas são educados na vida comunitária e preparados para uma certa mobilidade.  Os sacerdotes da comunidade de Saint-Martin são chamados a servir sucessivamente em várias dioceses, às quais se unem em grupos de três ou quatro.  Eles são chamados a viver juntos não só a vida sacerdotal, mas também a missão.  Para muitos, é a perspectiva desta vida fraterna e familiar, longe da solidão do pároco de ontem, que os leva à comunidade de São Martinho.

Outra de nossas especificidades é a importância que atribuímos à formação litúrgica, que para nós tem implicações beneditinas.  Aspiramos a formar sacerdotes firmemente enraizados na fé e na tradição da Igreja.  Os jovens que retornam ao seminário hoje são frequentemente desenraizados.  Eles são como muitos outros jovens de sua geração, muito conectados, até sujeitos ao vício em telas computacionais.  Muitos pairam um pouco sobre as coisas e são vulneráveis ​​a todos os ventos do pensamento.  Quando eles se juntam a nós, nós os mergulhamos no fundo da tradição da Igreja.  Não somos retrógrados ou nostálgicos por nada;  mas sabemos que uma árvore deve estar firmemente enraizada para crescer.

G MontalembertPor que o canto gregoriano ocupa um lugar tão importante em seus ofícios?

Don PréauxOs jovens, como outros cristãos, têm o direito de acessar o tesouro musical e espiritual da Igreja em sua singularidade e até em sua estranheza, ao invés de encontrar estilos de música nas igrejas que possam ouvir em outro lugar.  O canto gregoriano, despojado e profundo, toca a alma.  Ele fala algo da simplicidade de Deus, nos desperta para o seu mistério.  É um sinal do invisível.  Para tratar certas doenças mentais, os médicos não fazem seus pacientes ouvirem Mozart e gregoriano?  Se tantas pessoas são tocadas por essa música monódica, é porque encontram paz interior nela.  No mundo de hoje, a Igreja deve ser um refúgio de paz.

G de Montalembert  – Vocês são tradicionalistas?

Don PréauxNão, não da maneira que a palavra diz hoje.  Não temos problemas com a reforma do Concílio Vaticano II, inclusive no que diz respeito à reforma litúrgica.  Existe, na comunidade de Saint-Martin, uma mistura única de antigo e novo.  Temos sido chamados de “retrolucionários”.  Somos um pouco como aqueles carros antigos com motor novo.  O corpo é um pouco antiquado, a batina é um pouco antiquada e, ao mesmo tempo, damos uma formação muito familiarizada com as questões atuais.

Queremos simplesmente ser sacerdotes enraizados, equilibrados e bem na pele, armados para enfrentar o século XXI e seus desafios: desafios antropológicos e ecológicos, mas também o desafio de incutir uma nova cultura de caridade, respeito, fraternidade.  .  O distanciamento social que vivemos com a pandemia causará danos humanos: ao temer a contaminação, as pessoas não ousarão mais falar umas com as outras, terão medo umas das outras.  Mais do que nunca, teremos que nos lembrar da importância do amor pelos outros.

G de Montalembert – Os padres da sua comunidade usam batina.  Depois do assassinato do Padre Hamel ou da tragédia em Nice, você não teme por sua segurança?

Don PréauxO terrorismo pode atacar em qualquer lugar.  Toda a população está exposta à loucura assassina de indivíduos animados pelo ódio, fanatismo e desejo de matar.  Usar a batina parece-nos um risco medido.  Muitas pessoas ficam felizes em nos ver com nossas roupas.  Eles vêm até nós com mais facilidade e nos confiam as coisas.  Para muitos, é um sinal de esperança ver um padre de batina em lugares públicos e seculares, pois quem a usa é um artesão da paz e da doçura evangélica.

G de MontalembertComo explicar o abuso sexual revelado nos últimos anos na Igreja?

Don PréauxCreio que se os padres puderam ser culpados de atos tão hediondos é porque sofriam de uma profunda incompreensão do sentido de sua missão e de uma grande autoestima.  O abuso sexual muitas vezes revela e cai sob o abuso de poder.  Após a ordenação, o sacerdote recebe o poder de consagrar o pão no corpo de Cristo e de absolver os pecados.  Esses são poderes imensos.  Mas esta autoridade confiada a ele é primeiro a de Cristo;  é uma autoridade a serviço da verdade e do amor que não tem absolutamente nada a ver com violência e mentiras que levam a usar seu posicionamento sobre alguém para restringir sua liberdade!  O abuso sexual é um desvio, pior ainda, uma distorção da autoridade dada por Deus ao sacerdote.

G de MontalembertO celibato dos padres é uma coisa boa?

Don PréauxUm padre não pode ser o homem de uma mulher.  Deve se colocar a todos e esta disponibilidade “é paga” pelo celibato.  Isso é algo difícil de entender em nossa sociedade muito erotizada, que tende a considerar que sem o exercício da sexualidade não se é totalmente homem ou mulher.  Vejo uma mentira nisso: você pode viver plenamente sua vida humana entregando-se aos outros por amor e ternura, sem necessariamente passar pela genitalidade.  Há uma verdadeira fecundidade na nossa vida sacerdotal, uma verdadeira paternidade.  Nossa missão é dar à luz a vida espiritual, ajudar todos a descobrir que Cristo nos ama incondicionalmente e que sempre nos perdoará se aceitarmos nos converter.

G de MontalembertOs católicos se mobilizaram contra as restrições ao acesso a serviços religiosos considerados em nome de risco à saúde.  O estado esta errado neste assunto?

Don PréauxClaramente, e nossos bispos não hesitaram em dizer que tais restrições são irrealistas e inexequíveis.  O governo deveria ter pedido à Igreja para lidar com o problema, e não procurar fazer isso por ela.  Essa interferência do estado não é aceitável e estou muito feliz que o governo tenha refeito seus passos ao não mais limitar o número de admitidos nas igrejas em 30 fiéis.  Foi uma decisão absurda.  Por que permitir que as pessoas se amontoem nos trens e imponham uma distância tão restrita em igrejas ou catedrais, algumas das quais têm vários milhares de metros quadrados?

G de Montalembert  – O Natal está chegando.  O que essa festa significa para os cristãos?

Don PréauxNo Natal, é o mistério da Encarnação que celebramos.  O Cristianismo é uma religião inserida na história!  De fato, é com base na história que Deus quis estabelecer uma aliança com Israel e assim preparar o nascimento de seu Filho.  O Natal recorda-nos a proximidade e a compaixão de um Deus que, fazendo-se homem, cuida de cada um dos seus filhos.  A Escritura nos fala de um Deus de ternura, aquela qualidade de amor que se torna próximo e concreto.  Deus não é distante nem abstrato.  Para nós, é uma pessoa.  Tinha rosto, tinha voz, pensamento … Mas se o Natal celebra o nascimento do Filho de Deus, é também uma festa que nos lembra que cada um de nós é chamado a renascer um dia.  A perspectiva para os cristãos não é apenas terrena.  Desde o dia em que somos concebidos e nascemos, somos chamados a uma vida que não terá fim.  Em Jesus Cristo, Verbo Encarnado, o tempo torna-se dimensão de Deus, que em si mesmo é eterno. 

———————————————————————————————————————-

Creio que a entrevista de Don Paul Préaux ao jornalista Ghislain de Montalembert no Le Figaro cai bem como meu presente de Natal a meus leitores.

Quanto ao mais, somo-me à voz de minha Tereza: “Feliz Navidad / Feliz Navidad / Feliz Navidad / Próspero año y felicidad”.

 

 

 

 

 

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais