Ficção e história num livro só

   

A literatura e a história concorrem, cada uma a seu modo, para registrar fatos da vida brasileira, num entrelaçamento que tende a torná-las fonte de referências documentais. A literatura tem a força da fixação letrada, que sobrevive no tempo, diferenciada da técnica da história oral, que recolhe entre personagens e testemunhas versões de fatos que são de todo interesse conhecê-los e interpretá-los. Até mesmo por falta de pesquisas sistemáticas, por falta de um guia de fontes, de uma bibliografia especializada, a literatura ocupa um lugar de destaque, recuperando informações indispensáveis para o lastro de cultura das sociedades.

A literatura dos cronistas e viajantes, por exemplo, é mais rica do que os textos da historiografia dos primeiros séculos do Brasil. A tendência foi mantida e em romances, contos, crônicas, novelas, há mais sobre a vida brasileira, tanto nas cidades como nas áreas rurais, do que os livros de história reúnem em suas páginas. Embora sejam campos distintos, onde a estética e o método servem de guia para distinguir arte de ciência, a literatura e a história servem, de igual modo, à idéia vasta do conhecimento.

Marcos Melo tomou o caminho de fundir ficção e história, ao escrever O Conde de San Vicente – por uma nova história de Sergipe (Aracaju:Editora do Conde, 2006). No livro a ficção não apenas pura invenção, nem a história é a simples (ou complexa) realidade, mas, uma dialética de complementaridade, combinações que não se limitam aos rigores das diferenças formais e conceituais. Marcos Melo, que publicou um livro de crônicas evocativas de Propriá, bem recebido pelo público ledor, envereda por sendas amplas, balizadas pela seleção temática que o escritor, com sua consciência criadora, realiza para o seu projeto. A imaginação, porquanto ainda seja combustível da escrita literária, cedeu parte do seu prestígio à ação, com a qual o discurso ganha cadência, sotaque, se constituindo numa mensagem, com todo o seu poder comunicante.

As epopéias antigas eram decorrentes da fertilidade imaginativa de sociedades míticas, e foram superadas, a partir do gênio de Camões, pela poetização das ações humanas. Entre A Divina Comédia, de Dante e Os Lusíadas, do vate português, há um linha divisória clara, separando ficção e história, ainda que cada uma das obras guarde, em si mesma, a importância de suas temáticas. Dante utiliza dos  dogmas e valores do Cristianismo, para elaborar sua epopéia, enquanto Camões canta o brio dos mareantes lusos, dilatando a cartografia do mundo, na epopéia dos descobrimentos.

Marcos Melo apóia sua ficção na ante-sala do Conselho Diretor da Universidade Federal de Sergipe e na presença dos conselheiros, dando voz a cada um deles, na narrativa onisciente do livro. Começa, então, um desfile bem distribuído de temas, de questões, tendo Sergipe e figuras exemplares de sergipanos, como rotunda para uma reflexão que, como induz o título do livro, propõe uma “nova história” de Sergipe. O propósito, em si, é uma crítica aos estudos de história feitos no Brasil. Os historiadores, como os críticos, geralmente são tidos como anotadores de datas e de fatos passados, deslocados no tempo e desfocados da realidade. Os brasileiros de hoje ainda tomam lições gerais com Varnhagem, Capistrano de Abreu, Felisbelo Freire, João Ribeiro, Hélio Viana, e alguns outros, e completam com autores que tratam de temas mais específicos. Com a crítica ocorre a mesma coisa. As vanguardas, por exemplo, improvisaram a crítica através dos próprios artistas, enquanto as avaliações, retardatárias, apareciam nas mídias e nos livros.

Marcos Melo vai adiante, pondo na sala da discussão temas que nem sempre ocuparam o primeiro plano dos estudos históricos sergipanos. Ademais, o debate leva a uma revisão tópica, de assuntos contemporâneos, que escapam, também, do foco da pesquisa histórica. É, então, no contexto desse repasse doutrinário, que a história perde fluência para a ficção, com a citação do personagem Conde de San Vicente, cenarizando a narrativa ao longo das margens do rio São Francisco.

O enredo que envolve o Conde, desde a descoberta, casual, do pacote com os manuscritos, numa velha estante do Hotel Florelisa, em Propriá,  com todas as interfaces lúdicas, lembram a estória do Tesouro dos Jesuítas, tanto a que está contida nos livros de José Bezerra – O Tesouro de Jaboatã – e de Armindo Pereira – O Tesouro das catacumbas -, como a que está no jornal A Tribuna, com a verve de Clodomir Silva, com a participação técnica de Sindulfo Barreto.

O relato sobre as venturas e aventuras do Conde de San Vicente leva o autor a revisitar Espanha e França, em incursões demoradas, até que o cenário nobiliárquico seja adaptado ao Brasil, a Recife, e principalmente a Sergipe, notadamente no curso do velho Chico, onde as tradições ganham fóruns de história e a história se torna, de logo, parte da tradição que a oralidade difunde e muitas vezes até se folcloriza pela aceitação e pelo uso. É no cenário do rio São Francisco que Dom Isidro Firmino y Rojas de Aguillera, como a imitar o Incrível Exército de Brancaleone, intentando contra a República e apontando para a riqueza que existe em meio da miséria que vitima e avilta o povo, em seu bolsão de pobreza.

Sergipe, acostumado as contribuições técnicas de Marcos Melo, como economista e planejador, ganha um escritor de muitos méritos, que sabe contar estórias, e tem a crítica da historiografia, que mistura em seu gostoso livro sobre o Conde de San Vicente. A súbita chegada da atrasado presidente do Conselho Diretor da UFS põe fim a boa e ilustrada conversa, como se a ante-sala fosse melhor do que a sala propriamente dita. Está aí, para os iniciados ou não, um belo livro, uma boa leitura, e uma pitada de ironia que somente a literatura permite temperar, com relação aos fatos e personagens.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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