E este filme já encontrou resistência entre alguns aspirantes a críticos de cinema, como se vê por aí pela web. Mas vamos por outro caminho. Bacurau espanta os espectadores, espantalhos e distraídos, aqueles que esperam uma mudança vinda de cima, e nunca de si próprio.
É um filme revolucionário não por incitar a guerrilha. Mas, simplesmente por trazer uma revitalização da criatividade formal que já estava lá no primeiro Cinema Novo (Deus e o Diabo (…), Os Fuzis, Vidas Secas). A semelhança temática é só ponto de partida. A continuação vai pelo caminho do absurdo, do surreal, do catastrófico de gênero ficção científica ou terror. Trazer Cronenberg ou John Carpenter para a roda do cangaço, é, com certeza, uma inovação diante de uma crise.
Kleber Mendonça e Juliano Dornelles inventam, mas dentro da duração, do ritmo aceito pelo europeu já acostumado com Tsai Ming Liang ou Apichatpong, É comédia, sem cair nos clichés norte-americanos do chiste. Comédia por ser, obviamente, fora do real – do verossímil.
Erram, portanto, os mais conservadores ao achar que o filme é um manifesto pela mobilização descompromissada. É uma obra prima, de arte, que está ali pra servir a nossa degustação momentânea, e nos dar saídas para novas criações dentro do chamado cinema nacional. Quem assiste ao filme e se espanta com a displicência ou irresponsabilidade dos autores, não pegou o espírito da coisa.
A coisa só funciona se a gente rir do “daqui a alguns anos…”, letreiro logo do início da história. Será que teremos um futuro tão utópico, em que a igreja não funciona mas a escolinha está em atividade? Que a comunidade se vê ameaçada e, por conta disso, consegue se unir contra um inimigo comum? Certamente, não é esse o panorama…
O espectador se vê fisgado pela ironia ativa, pela felicidade em que o filme foi produzido, com o entusiasmo de um país que não existe mais – e que querem que exista de alguma maneira ao menos na imaginação. Um país que via, em vez de violência motivada por governantes autoritários, um horizonte de organização das comunidades interiores.
Não foi por acaso que o filme conseguiu o prêmio do júri de Cannes. É o farsesco da comédia-suspense-terror-ficção-científica-dramática (ou inadequação em gêneros) que motiva nossa atenção. É filme de alguém que entendeu: não se faz mais filme realista, no universo dos fakes. Cinema é Cinema, com C maiúsculo – por isso Sônia Braga com sua presença aguda.
Uma potência do falso, portanto. Potência da farsa. Estamos nessa guerra. Mas a meta não é “quem é mais falso”. A meta da guerra entre cangaço hi-tech e invasão extra-territorial é a dos nossos limites de imaginar que devem ser ultrapassados. Sabemos, todos nós que já fomos crianças, que pra imaginar é preciso felicidade, entusiasmo. Longe do ativismo épico, porém, próximo do elemento marginal – das bordas que vivem, brilham, mesmo que seja pela psicodelia fora do lugar.
Lunga, como Corisco, é aquele ator que aparece dizendo a quem está sentado tentando entender o que se passa desde o início: herói marginal, não – um sentinela contra os que eliminam nossos sonhos, nossas imagens. Um soldadinho ali estilizado, como um guerrilheiro atualizado, que é adorado como um cacique. Nada mais antropofágico…