Os Reis e Imperadores foram, por muito tempo, encarnações de Deus, representações de todas as virtudes, da sabedoria acumulada no tempo, e da força que as guerras e disputas familiares tornavam possível. As leis, os códigos, juntamente com os costumes, que em muitos países são suas fontes, também sujeitavam as populações à autoridade divina dos soberanos. Alonso de Villegas se valeu desse repertório vigente antes e no seu tempo, para tornar o seu livro Flos Sanctorum numa fonte exemplar, da qual vicejaram os valores que serviram de balizamento da expansão ibérica pela terra, muito especialmente junto aos povos do Novo Mundo, que surpreenderam os colonizadores com suas existências, línguas e culturas. A Coroa de Portugal, como a Coroa da Espanha, também dava todo crédito ao conhecimento de salvação, que permeou as relações nas terras descobertas e conquistadas. As biografias de santos, monges, beatos, eremitas, doutores da Igreja se multiplicaram, ao lado de outros livros difusores do ideal da vida santa, frisando os exemplos, reforçados pela censura e pelo controle que as devassas, denúncias, e ações inquisitorias tornavam públicas. O combate ao protestantismo, ao judaísmo e aos agnósticos em geral convivia com as prédicas nos púlpitos das igrejas e capelas, ou no magistério moral que se estendia nos contatos dos padres e frades com os senhores de terra, fazendeiros de gado ou produtores de cana e de açúcar, espalhados pela imensidão das terras. Supunha-se, naquele tempo, que a natureza da terra era equivalente à idéia do paraíso, e que nela poderia se desenvolver uma sociedade de homens puros e sem pecados. Sujeitos à fé, e em conseqüência a Deus e a toda a linhagem religiosa, homens e mulheres eram também sujeitos ao Rei, mesmo a distância entre eles limitasse as relações entre as criaturas e seu criador. E assim como havia toda uma malha de devoção, a partir dos Oragos e das festas que eles ensejavam, havia uma fronteira de leis, modos, costumes, aplainando as manifestações livres. Neste sentido há uma literatura de muitos títulos, colocada à disposição dos predicadores, disseminada como alimento de fé. A colonização das três américas decorreu, assim, do projeto cristianizador irradiado a partir da península ibérica, ainda que ela alimentasse divergências políticas. No plano espiritual propriamente dito tanto Espanha, quanto Portugal assumiram posições singulares na história, a partir das descobertas marítimas. No Flos Sanctorum estão referenciadas as 14 obras de misericórdia, 7 da alma e 7 do corpo, precedidas de situações reprováveis, e que deveriam marcar a vida cristã. Da alma são reprováveis: a Ignorância, a falta de Prudência, o Pecado, ser a outro Oneroso, ou Pesado, a Tristeza ou o Desconsolo, a Ofensa ao próximo e a Dívida para com Deus, sem ter como pagar. O remédio estava nas Obras de Misericórdia, que são: Ensinar a quem não sabe, dar Conselho, Corrigir o que erra, Sentir a Dor do próximo, Consolar o triste, Perdoar a injúria e Rogar pelos vivos e pelos defuntos. No plano do corpo não Ter o que Comer, nem o que Beber, nem o que Vestir, nem onde Recolher-se, não ter Saúde, nem Liberdade, nem Sepultura. Para tanto o remédio eram as Obras de Misericórdia, como Dar de Comer aos famintos, Dar de Beber aos sedentos, Vestir o nu, Dar Pousada aos peregrinos, Visitar os enfermos, Redimir os cativos e Enterrar os mortos. Alonso de Villegas recorre a diversos autores, desde os evangelistas, para justificar o enunciado das Obras de Misericórdia, ditadas pelas situações inferiores (hoje seriam injustas?). Tiago dizia que a fé, sem obras, é morta, São Paulo proclamava a apresentação de todos os viventes ante o Tribunal de Cristo, para que cada um leve seu prêmio e paga conforme suas obras, para São João, no Apocalipse, as obras seguem na outra vida aos que desta vão lá. Acrescenta o autor: O mesmo que as Escrituras Sagradas diz, disseram muitos doutores sagrados, como São Jerônimo, São Basílio, Santo Agostinho, São João Crisóstomo. E o mesmo, continua, declarou o Santo Concílio Tridentino, de maneira que são necessárias obras, e obras boas, deste jaez são as que comumente se chamam de misericórdias. (continua)
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