Foi um prazer conhecê-lo, Governador Celso Carvalho!

Conheci o Governador Celso Carvalho, falecido sexta-feira, 14 de agosto, desde tenra idade. Laços familiares nos uniam. Um tio materno, o odontólogo José Figueiredo Cabral, fora casado com Josefina Carvalho (Fifinha), irmã muito querida de Celso.

 

José Cabral falecera muito jovem, vitima de moléstia pulmonar, então terrível, deixando viúva Tia Fifinha, muito jovem e bonita e uma única filha, Carmem Lúcia, que era uma garotinha.

 

Delicada, terna, muito carinhosa e dedicada, tia Fifinha se constituiu na vida como um grande exemplo de mulher e mãe, sobretudo na firmeza do caráter e no respeito que fez impor ao seu redor em termos de finesse, distinção e classe. Uma lady, uma senhora de muito respeito e operosidade, no contexto familiar e social. Uma senhora em extinção talvez, porque o seu viver e o seu exemplo são bem diferentes da corriqueira recomendação atual, nas novelas e nas mazelas, repetidas e recomendadas nas tele-novelas, em que só se louva na mulher, dizendo ser virtude necessária na modernidade, a lascívia, a impudiscência e a promiscuidade. 

 

Tia Fifinha, por seu exemplo de vida, mereceria ser tema de muitas louvações marcadas em crônicas e ensaios, testemunhando os agrados recebidos em sua longa e exitosa existência, alegrias e carinhos que continuam a abençoar não só a única filha, como a sua vasta coleção de sobrinhos, os filhos de seus irmãos, e outros, iguais a mim, vindo do outro lado, do esposo José, a quem não cheguei a conhecer, sobrinhos por adoção e cortesia, surgidos dos seus cunhados, que sempre a reverenciaram com excelentes lembranças.

 

Assim, falando um pouco de Tia Fifinha, estou a dizer que os laços de amizade entre meus pais Manoel e Lourdes Cabral Machado, e o Governador Celso Carvalho, recentemente falecido, derivaram de uma afinidade política partidária e ideológica, iniciados por um contraparentesco de ordem familiar de muita aproximação.

 

Celso Carvalho foi, em todos os momentos em que testemunhei de presença próxima, um cavalheiro de fino trato, um gentleman, um homem de bem com a vida, louvando o riso e as cores da vida. E a vida lhe floriu, tanto na mulher amada e conquistada nas amenas areias potiguares, Dona Bertilde, como nos filhos, netos e bisnetos que deles chegaram.

 

Homem vocacionado para o bem servir, inteligência, cultura e caráter superiores à circundância de então, Celso, um jovem advogado, elege-se prefeito de sua cidade Simão Dias, iniciando uma carreira vitoriosa em correção e seriedade, aliado a um humor fino, um tratamento cortês, sem ódios ou agravos, diferente do momento circunstante em que a virulência das palavras, quando não resultava o desforço e a violência, ensejava a desqualificação pegajosa e perniciosa, daqueles de mediano caráter e de tantos outros desprovidos de um maior mérito.

 

Sim porque é muito fácil na luta política o sujo enlamear o que prima pelo bom proceder, taxando-o de conservador, elitista, “barão” e aristocrata, ferrando em ferro e brasa como inimigo do povo e insensível aos seus clamores. Uma cantilena de horrores ditada e remoída até pelos doutos, cultos, eruditos e até por historiadores que cavalgando ideologias como verdades incontestáveis, desprezam o herói de Carlyle e até o varão de Plutarco, achando que os homens, todos os homens são iguais.

 

E os homens, que precisam ser tratados igualmente em dignidade, sabem que nós homens não somos assim tão iguais.

 

Porque há homens que se fazem mais dignos dos que os demais, daí suscitarem a reverência, quando na horizontalidade da morte, se apresentam bem maiores dos que os que lhe contemplam no esquife.

 

Sebastião Celso de Carvalho é um destes homens que se firmou numa dimensão superior aos seus circunstantes.

 

Só por que foi governador do estado de Sergipe, perguntarão alguns apressados desconhecedores dos homens e de sua história?

 

Não! Há governadores e governadores, alguns só ensejando a curvatura falsa dos áulicos, dos eternos asteróides do poder, e dos desprovidos de estofo interior. Não é o caso do homem público agora falecido. Ele é o último grande político, surgido da geração pós-ditatorial getulista dos idos de 1946, sendo um legítimo representante de uma casta de real valor, pouco imitada.

 

Em todo aquele período, que vai de 1945 a 1964, Celso Carvalho fora um membro do Partido Social Democrático, o PSD, agremiação comandada em Sergipe por Francisco Leite Neto, que juntamente com o Partido Republicano, o PR de Julio Leite, polarizaria com a União Democrática Nacional, a UDN de Leandro Maciel a política estadual.

 

Neste tempo, espremido entre dois períodos autoritários, os historiadores classificaram como república populista; uma versão modernizada de predomínio de oligarquias.

 

E porque nunca tivemos democracias que nos agradassem, nem ousamos ver além da caverna de Platão, analisando o que vigia fora daqui, tanto no exterior asiático, europeu ou americano, quanto além do caudaloso São Francisco e do pouco copioso Real, insistimos claudicantes, como mouco burro choutão, tentando copiar o irreal, e demonizando o capital. Querendo adotar ideologias totalitárias e igualitárias, que o tempo e o contratempo fizeram em nossos descaminhos e outros bem piores escaninhos, pelos quais bem sofreu a humanidade, em muros de vergonha e em perseguições inomináveis.

 

Aqui, por mais tacanho e pensar bem mais estranho, dizemos que aquele tempo era um mau tempo, do partido da cana, do partido do boi, do empregador escravagista, do barão latifundiário, do mesquinho empedernido, quadra de muitos inimigos do povo, que sofria bem mais, nos excessos de cassandras e de esfinges, a suscitar demagogos, aproveitadores e canalhas.

 

E Celso Carvalho sofria tal rescaldo, afinal nunca posara de tribuno populista, em excessos verbosos que só se fizeram calamitosos nesta malfadada e mal afamada república populista.

 

Seu estilo era moderado e conciliador; um conservador, em correção, eficiência e tolerância, um liberal na ampla aceitação do pleno debate, sem espíritos preconcebidos contra os que lhe pensavam em diferenças. Mas, diferente do resto do mundo, o pensamento conservador e moderado restaria combatido, como se fora uma excrescência ideológica, uma moléstia perniciosa ou um tumor apodrecido a lancetar.

 

Em verdade, trata-se de uma característica brasileira: o envilecer das idéias, desmitificando os feitos, descaracterizando as siglas e desclassificando os homens.

 

Nós não temos nem santos, nem anjos, nem heróis. Aqui jamais vingaria Maria, a rainha dos apóstolos, nem Cordélia, a mãe dos Gracos.  

 

Aqui, os conservadores são aristocráticos ranhetas e burgueses inimigos do povo se rivalizando com os liberais e adeptos da livre concorrência do mercado e da ampla liberdade de iniciativa na exploração do trabalhador.

 

E como a moléstia é incomum e a todos contagia, os comunistas ficaram tão envergonhados depois da queda do muro de Berlim, que ao invés de realizarem mea culpa, camuflaram o próprio nome, escondido e amputado nas atuais siglas partidárias.

 

E assim, até os socialistas pregam sem pejo a livre geração de emprego e renda, todos a favor do bom rendimento da caderneta de poupança, enquanto os trabalhistas, porque não alistaram para as suas fileiras muitos trabalhadores e sindicalistas, resolveram se reforçar, no nome e no discurso, num partido dito, dos trabalhadores, fundado por estudantes grevistas e outros iguais sindicalistas.

 

Mas a companheirada toda, sem largar a barba e a verve, parece estar fazendo bem pior, em termos de patrimonialismo escancarado e parasitismo estatal apresentado, tudo aquilo jamais usado e abusado por um conservador tacanho ou por um liberal selvagem de antanho.

 

“Nada mais parecido com um saquarema, que um luzia no poder”, dizia-se no tempo do império entre liberais e conservadores. E que continua ainda. O que foi é o que será. E ainda pensam que são diferentes e estão fazendo melhor.

 

E Celso Carvalho, recebendo os aplausos no cortejo de seu esquife, num tempo em que de longe já não carregava consigo a aura do poder e do mando, cala a todos que ainda resistem a denegar um tempo muito desprezado e ofendido; igual aos revolucionários franceses de 1848, deblaterando contra o antigo regime e sua legitimidade, suscitado nas lembranças de Aléxis de Tocqueville.

 

E Celso fora o último Vice-Governador legitimado por eleição e virtude próprias, Governador e Vice, Seixas e Celso seriam eleitos como votos próprios e pessoais em pleito memorável e jamais contestado.

 

Governador e Vice, Seixas e Celso permaneceriam companheiros em longa amizade e em profunda admiração mútua, como assim deve ser entre os grandes homens, não se deixando erodir pelas comezinhas diferenças que a miudez humana insiste em profanar as suas relações.

 

Quis o destino, porém, que Celso o sucedesse no governo num movimento em que não promovera, nem desejara, mas que o fez, para que um outro não o fizesse em seu lugar, quando eram tantos os que o queriam, só para exercer em violência, a vingança e a perseguição não desejada.

 

E Celso fora o homem talhado para aqueles tormentosos e tumultuados dias. O tempo o diria e o dirá bem mais, sobretudo quando não mais sobrarem queixas nem brumas. O momento ainda não é dos “souvenirs” de Tocqueville. Os historiadores estão ainda perdidos na neblina por eles próprios levantada, e permanecem envergonhados em sua obra de demolição, sem contemplar os homens e seus feitos, naquele tempo de muitas incompreensões mútuas.

I

gual ao descrito por Tocqueville, em desafiando os seus circunstantes que condenava o antigo regime francês, vale a pena repetir-lhe as palavras: Ne méprisont pas nos pères, nos n’en avons pás le droit. Plût a Dieu que nous pussions retrouver, avec les préjugés et leurs défauts, un peu de leur grandeur.” página 204 de L’Ancien Régime e la Revolution, edição francesa, Elibron Classics). “Não desprezemos nossos pais. Nós não temos disso o direito. Supliquemos a Deus que nós possamos recuperar, com os preconceitos e seus defeitos, um pouco de sua grandeza”.

 

Hoje vivemos ainda assim, teimando em maldizer os homens e os feitos no período revolucionário. E na atual circunstância de plena liberdade, estamos talvez a cometer iniqüidades bem maiores e piores.

 

Naqueles tempos, e bem mais que agora, precisávamos mais que tudo, requisitar a temperança dos feitos e a moderação dos fatos. Infelizmente, porém, muitos acham ainda, que o melhor teria sido encampar a rebeldia, com passeata na rua e quebra-quebra, tudo aquilo que se revelou tolo e irresponsável, afinal só fez ampliar e recrudescer a violência atrabiliária.

 

E não fosse a moderação dos homens, a violência teria sido feita bem maior. Porque a ferocidade parte dos espíritos mal formados, dos que não conseguem transigir e conviver em diferenças. E Celso Carvalho, enquanto governador, fora vítima recorrente da possibilidade de também ser apeado do poder, porque era, sobremodo, um moderado, um pacificador de ânimos. Que o digam as ameaças então acontecidas por aqueles que cortejavam os quartéis naquele tempo, em que os sedentos de sangue rondavam a farda, como vivandeiras embrutecidas.

 

Mas Celso superou a tudo e todos. Fez um governo de pacificação e realizações sem arroubos, zabumbas e papoucos. Seu secretariado, constituído de homens do melhor calado intelectual e moral, como Aloísio de Campos, Cabral Machado, Walter Cardoso, Djenal Queiroz, José Carlos de Souza, Tênisson Aragão, Paulo Barreto de Menezes e tantos outros, se fizeram marcar pelo Condese, pelas escolas erguidas e conservadas, pelas estradas construídas e bem asfaltadas, um recorde então, e outras muitas ações promovendo o desenvolvimento o apreço à causa pública. E depois saindo do governo, restou bem respeitado e mais querido. E assim permaneceu como os homens probos e de rala ambição.

 

Foi ainda duas vezes deputado federal, é verdade, mas como poucos, saiu da política, permanecendo uma notável referência de zelo ao múnus público. Um excelso, com dirá em fina ironia que se traduziu verdadeira; afinal depois de ter sido muito, virara um ex-Celso, uma brincadeira consigo próprio, como assim se gostava de definir.

 

Um homem feliz: na política, na vida pública e na família. Um homem alegre e de bem com a vida, ao lado da mulher única, bem querida e bem amada, como assim deve ser. Enternecido pelos afagos de Dona Bertilde, uma primeira-dama como poucas, em dedicação e sobriedade, que hoje chora a partida do seu amado, junto aos filhos e os muitos netos deste amor.

 

Quanto a mim, um seu amigo e admirador apenas, estou a relembrar muitos fatos de sua vida e de nossos encontros comuns. Recordo coisas tolas, mas sugestivas, de cinqüenta anos passados, esquecidas, como a posse do Governador Luiz Garcia, em 31 de janeiro de 1959.

 

Por que ir tão longe, para falar de coisas que não mais existem? Porque na vida de Celso, esta solenidade de posse se tornaria um fato notável e único. E eu testemunhei tudo, com pouco mais de onze anos de idade, sem jamais ver coisa igual, em termos de intolerância e ódio.

 

Por residir na vizinhança da Assembléia Legislativa, eu fora assistir das galerias do antigo Palácio Fausto Cardoso, a posse de Luiz Garcia, o novo Governador do Estado.

 

O governante que saía, Leandro Maciel, concluíra um mandato caracterizado pela eficiência administrativa e pela violência desferida por seus correligionários. Vivia-se um momento de muitas paixões e excessos de intolerância.

 

Celso Carvalho, um jovem deputado, porque muito benquisto e de livre trânsito entre contendores agressivos, fora o escolhido como o orador da oposição.

 

Em sua fala, referindo-se ao quatriênio anterior, Celso fez apenas uma crítica leve, destituída de virulência, ao governo que saía, dizendo textualmente que “tinha sido um tanto impiedoso”.

 

Esta frase me ficou inesquecível, porque eu jamais veria na seqüência uma vaia maior em minha vida. As galerias pareciam cair de cima a baixo, com tantos apupos de “não apoiados”. E eu, “pessedista” ali todo imerso e bem camuflado, botafoguense em plena torcida flamenguista, jamais me sentiria tão vulnerável e passível de tanta contundência. Era um tempo de muitas incompreensões, em que valia mais o rugido descabeçado da torcida, do que o lento refletir dos homens de bom senso.

 

E esta vaia, que Celso Carvalho tomara, nunca o arrefeceria na luta da boa causa pública, nem lhe tiraria o sorriso dos lábios. Porque em todos os tempos há momentos para os demagogos bem falantes, e há momentos também para os farsantes. E a torcida é sempre tola, descabida e descabeçada. Porque os homens são os mesmos em suas grandezas e misérias, sobretudo os que enveredam pela vida pública, uns enganando algum tempo, outros enganando todo o tempo, sem enganarem a si próprios, em suas funestas conseqüências.

 

Há homens, porém, que suportam a vaia e não sucumbem diante do infortúnio, planando em vôo e brio, vencendo injustiças e desafios sem nunca enveredar por desvios e por baixios. São homens com quem vale a pena conviver, só para poder compartilhar um pouco do seu existir.

 

Por isso, nesta hora de passagem, em que a nossa permanência se apresenta reduzida e apequenada, vale a pena externar um pouco de alegria na partida inexorável dos que nos foram bem queridos e admirados.

 

Muita gente em Sergipe, por certo, poderá se somar ao meu pranto: Foi um prazer conhecê-lo, Governador Celso Carvalho!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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