Fugir com o circo

Ir embora. A mochila arrumada no canto do quarto a observa. Não um sonho: um plano. O circo logo ali, no fim da rua. Ir embora com o circo, não o sonho de criança, o plano, adulto, decidido. A mochila a observa. Ir-se de uma vez. “Bom dia, queria um emprego”. Formal demais para um circo. Rumbeira não, nem trapezista. Desastrada demais para ser sensual ou se sustentar na leveza. Morte certa. “Bom dia, queria ser palhaça”. Palhaço não se ensina, se descobre. Sai debaixo do lençol. “Bom dia, sou palhaça. Tem vaga?”

Nunca vi uma palhaça no circo – respirou fundo, cansada. Não quero discutir relações de gênero no circo. A mochila arrumada no canto do quarto, pesando. Não quero discutir mais nada. O cansaço pesando. “Bom dia, sou palhaça. Posso ir embora com vocês?” Ir embora é quando não dá mais pra ficar. Palhaça: o exagero do erro, da queda, do passo mal-dado, da falta de jeito com a vida. Exagero do humano. A maquiagem e o nariz na mochila. Desastrada, sou por vida! – riu de si.

Palhaço, bobo da corte, louco. O escracho do humano, a voz da verdade. Todos fingem não ouvir, não entender. E eles podem falar. A liberdade da fala, enfim, da vida. “Bom dia, sou palhaça. Quero fazer rir de sua própria desgraça”. O nariz vermelho e a máscara. Enfim, posso apontar o dedo na ferida. Um plano, não um sonho. Ainda que não diga uma palavra, falar de toda a fragilidade de ser um humano. “Bom dia, sou humana e palhaça”. Errada do princípio ao fim. Todos os palhaços cometeram algum erro grave e o escondem sob o riso, dentro do nariz – disse para si, pensando em seu próprio erro.

Olhou a mochila e respirou fundo. Hoje é dia de ir embora. “Mãe, pai, sou palhaça”. Desnecessário dizer. A vida já havia se encarregado de mostrar a todos o quão inadequada ela era para uma vida em sociedade. Em casos assim, melhor mesmo se esconder atrás de um nariz vermelho. Acho que eles vão se sentir aliviados – disse para si enquanto decidia se era necessário levar a carteira de identidade ou não. Posso ser qualquer uma amanhã. A mochila pronta a observá-la.

E se não der certo? E se faltar dinheiro? E se faltar coragem? Abanou a cabeça para espantar os pensamentos ruins. Só no circo pode viver uma palhaça. Tão inadequada e estranha, tão impossível de fazer parte. “Bom dia, sou palhaça. Caibo aqui?” Um dia aqui, outro ali. Talvez não dê tempo de as pessoas começarem a me olhar estranho. Ou simplesmente dirão: é a palhaça. É a palhaça, e tudo se justifica, tudo se perdoa. Há, finalmente, uma categoria em que se possa enquadrá-la.

“Bom dia, sou palhaça e cansei do mundo”. Levantou da beira da cama em que estava sentada engolindo todo o ar possível. “Posso ir com vocês?” Pegou no guarda-roupa uma das poucas peças que não tinham ido para a mochila, um vestido comprido de florzinhas. Vestiu e se olhou no espelho, achou estranho o próprio corpo, o vestido, o rosto. Mas aos 16 anos todos os corpos são meio estranhos mesmo. Conformou-se. “Bom dia, sou palhaça. Podem rir de mim”. Foi até o banheiro e lavou o rosto, para acordar, para ter coragem, para limpar. A casa vazia ecoava, os pais e os irmãos todos muito ocupados em ter uma vida real.

“Bom dia, sou palhaça e não me importo com a realidade”. Olhou o quarto ainda uma última vez, não como quem se despede, mas como quem não quer esquecer. Tentou ficar com os detalhes guardados. A mochila a apressá-la. Um frio na barriga, um arrepio percorreu seu corpo. Um plano, não um sonho. “Posso ir com vocês? É que eu não posso mais ficar”. Fechou um pouco os olhos, vivendo a vida devagar. Depois, como se alguém gritasse para apressá-la, calçou os sapatos maiores que os pés – “sou palhaça” – e pegou a mochila pesada e colocou-a com um único gesto às costas.

Fechou a porta, mas não levo a chave. Saiu à rua contente com o sol do final da tarde e caminhou um pouco apressada até o final da rua.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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