Fui!

Estávamos cinco pessoas ao redor de uma mesa; eu o único bebedor do grupo, Joaquim um desdentado barrigudo, apelidado por Quincas Barriga, Gedalva, uma professora universitária solteirona, Melquisedeque, mais conhecido por Melque e Eduarda que todos afagam por Dudinha.

 

A começar por mim, todos tolos, desimportantes, discutindo a nova lei que fustiga o motorista consumidor de bebida.

 

Na mesa, nem uma cerveja seria aberta, afinal dos cinco comediantes, eu era o único a não ter por contumaz o bolso ou a carteira fechados. Mas, a despeito de melhor assunto, todos estávamos a espinafrar a chamada “lei seca”, denominação tola, mas que já caiu no gosto popular, em cópia caricata da famosa e equivocada lei americana, que só fez nutrir e crescer a criminalidade naquele país.

 

Um batismo canhestro e burlesco, diga-se até por mau gosto, afinal lá nos “states” a “lei seca” viera dura para punir a venda e a fabricação de bebidas, e aqui a nossa lei não vem punir nem a venda nem o consumo de bebidas alcoólicas.

Ou seja, lá a “lei seca” tinha sua origem no puro puritanismo dos que não gostam de whisky nem permitem que outros gostem.

Lá a “lei seca” era atentatória à liberdade, aqui a nossa lei, igual ao restante do mundo, castiga apenas o imprudente condutor de veículo automotor que esteja alcoolizado.

 

Mas a professora Gedalva, que nunca engolira uma gota de álcool na vida, abstêmia de quase tudo por opção e nojo, estava irada com a perspectiva de ser parada no tráfego e ter que soprar o bafômetro para explicar as suas barbeiragens no volante.

 

 “Será este bafômetro esterilizado, descartado, imune a contaminações?” Perguntava ela enfurecida com a possibilidade de contrair em sobejo um herpes labial ou uma promíscua infecção.

 

E mais; porque um seu aluno lhe informara que até num antisséptico bucal existe álcool na composição, questionava exaltada:– “Já pensou eu ser multada porque bochechei um antisséptico dental?”

 

A questão fora borrifada com cuspe e hálito na cara de todos. A conversa tomaria vezos jurídicos, sói compatíveis com o leguleio dos rábulas de auditório, não fosse a chuveirada onidirecional de saliva espargindo perdigotos conspicuamente para toda a assembléia.

 

E todos lhe deram logo razão. O bafo de Gedalva era um desafio, não aos bafômetros e às blitze de trânsito, mas aos próprios formuladores dos desinfetantes de vasos e cloacas, clorados ou alquilados, inda mais com tal exibição em mau hálito de acidez tão revoltante.

 

Refeito do susto e da baforada, o adiposo e luzidio Joaquim rompeu o silêncio e o estupor.

Estava preocupado com a possibilidade de ser multado por mascar um bombom de licor.

Logo ele, Quincas Barriga, quem no grupo não podia chupar qualquer bala, chocolate ou caramelo, muito menos um bombom de licor, segundo seu médico que lhe proibira tais guloseimas, por cardíaco e já bi-safenado, diabético e hipertenso contumaz, mas que indisciplinado na alimentação permanecia comendo como um jegue.

Quincas Barriga preferia ampliar o estômago, o intestino e o cano de saída, no reto e no dejeto, a ter que soprar o tal bafômetro.

 

Em dejeção similar, Melquisedeque falou que não gostava de álcool nem vindo dentro de um bombom.

E como bom leigo cristão começou a deitar falação contra os malefícios da bebida, confessando-se puro e abstêmio sem pecados.

Do meu canto em silêncio, senti-me merecedor de todas as danações eternas, só pelo olhar fulminante recebido de Melque.

E eu que odeio os abstêmios e os tenho por maiores pecadores e intolerantes, me questionava como um homônimo do rei de Salém estaria ali contra o vinho e o seu espírito.

 

Para quem não se lembra, o primeiro Melquisedeque, o verdadeiro, fora rei de Salém e sacerdote de Deus altíssimo.

 

Está na Bíblia, em Gênesis 14, 18-20, Melquisedeque abençoou Abraão com pão e vinho dizendo: “Bendito seja Abraão pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra! Bendito seja o Deus Altíssimo que entregou os teus inimigos em tuas mãos!”

E a Bíblia não fala, mas diante da mesa regada a bom vinho, a alegria do viver foi tamanha, que a festa jamais foi esquecida. E muito feliz como anfitrião, “Abraão deu-lhe o dízimo de tudo”.

 

Pois é; contra o livro santo, o nosso Melque carola seria o inimigo fundamental de Melquisedeque, o verdadeiro, aquele que benzera, brindando em vinho de boa safra, o povo judeu para sempre.

 

Relembrei então que certa feita, como conviva de um almoço, Melque, o nosso Melquisedeque falsificado, rejeitara uma cerveja suada, num tórrido dia de verão, emitindo esta pérola de menosprezo à mesa e ao banquete oferecido: “Na minha casa não bebemos álcool!”

 

Fato verídico, verdadeiro! Igual a resposta do dono da casa, a quem Melque jamais perdoara. “–Pois na minha casa, todos bebem!”

 

Mas este Melque, o único que deveria abençoar o bafômetro, em malsã sobriedade, estava também picado da vida contra ele.

 

O problema é que por natureza de vãs abstemias, Melque era afeito a outras promiscuidades, mais vis e mais deletérias, para as quais não se eximia nem se exibia por necessárias assepsias.

 

Em meio a vícios menos perniciosos, por parasito e aproveitador, era conhecido como “arroz de festa”, penetra de todos os acepipes, um biguzeiro contumaz, vivendo somente de caronas, porque nunca comprara um carro, nunca aprendera a dirigir, e detestava pagar um táxi por mão de figa excelente.

 

Estava combatendo a nova lei, só por sovinice, rejeitando já em insolência, a perspectiva de um seu motorista de favor, ser flagrado no bafômetro, e a conta lhe chegar, por necessário rateio. -“Eu não pago!” – Dizia ele revoltado.

 

Foi aí que se ouviu a voz fina de Dudinha, se misturando na conversa e perguntando que consumo de bebida provocaria seis decigramas de álcool por litro de sangue?

 

Dudinha não estava preocupada com a possibilidade de também ser flagrada no bafômetro. Ela não bebia. Sua preocupação era ser pego no bafo o padre que celebra a Eucaristia com pão e vinho.

 

Logo Dudinha que não freqüenta a Igreja nem vai à Missa, estava agora despertada pelo bafômetro, até com o sopro do padre no mal afamado aparelho, que não respeita, nem sotaina, nem batina, nem cachaça de bom buquê, muito pior jeropiga fina, ou apaga-tristeza de rala fedentina.

 

E a pergunta ecoava inconsútil, na sala inútil chegando a mim, o único do círculo, que silencioso continuaria a aplaudir a nova lei.

 

Não por causa da cabalística dosagem de seis decigramas por litro, muito menos porque seja meu desejo fugir ou desafiar o bafômetro, mas, sobretudo, porque não admiro esta legorréia advocatória, que espanca o bafômetro, como uma fuzilaria contra a democracia, e que promove, por mal disfarçada inocência, só o crime e o desmando.

 

Eu bebo! Confesso-o até com alegria. Diria inclusive que bebo pouco; menos do que mereço. Mas, eu não bebo quando dirijo. Uma decisão de longas datas, muito antes do bafômetro.

 

Ó exíguos decigramas de álcool no sangue, e que não me tiram do sério! Ó conversa tola, de tantos tolos!

 

Saí do papo. Aquilo me incomodava, sobremodo. Por que é tão difícil coibir as coisas erradas?

 

Ouvindo tantos comentários tolos que não resolvem o problema da impunidade no trânsito, eu preciso de bem mais que seis decigramas de álcool para me felicitar. Um micro grama deste tipo de conversa, que tanto acaricia o malfeitor, me infelicita em demasia.

 

E assim, quando o papo derivou para desvendar o essencial mistério de quantos copos de cerveja, quantos bombons de licor, quantos gargarejos de bochechos, quantos tragos de vinho canônico produziriam o histriônico a ser flagrado no bafônico, eu já me sentia afônico de besteiras tantas que estava a ouvir.

 

Logo eu que por melhor gozo, sem exclusão, prefiro tanto destilados quanto fermentados; um lavando o outro por conclusão, e sem exceção.

 

E esta minha exceção não se restringe a copos ou taças, porque entendo como uma melhor mensuração do prazer de bem beber, não falar jamais em garrafas ou doses, melhor preferindo discorrer sobre tardes, manhãs e noites de boas goladas em boa conversa.

 

Entendi que aquela conversa não levaria a nada, por desimportante e tolos, todos nós.

 

Vi que ao meu lado surgira Tereza, minha mulher e motorista particular exclusiva, que não bebe por livre opção, e que aciono ao primeiro gole.

 

Quando farreamos, ela e eu, em mais uma razão para amá-la,  Tereza nunca me nega a companhia, e quando me traz dirigindo, eu venho tranqüilo, ao seu lado digerindo, às vezes sozinho, outras vezes com colegas, torcendo agora por novidade, pra encontrar um bafômetro pela frente.

 

Lembrei então que um licoroso Old Parr me esperava em casa, junto a uma cuba de gelo aconchegante, um queijo camembert oloroso e um gorgonzola mais que cheiroso; melhores companhias para o restante do dia.

 

Boa romaria faz quem em sua casa bebe em paz. Fui!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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