Ligou o velho rádio a pilha e a voz do locutor preenchida de chiado invadiu a pequena casa de três cômodos. Da cozinha, a mulher gritou impropérios: “Lá evém com essa miséria desse barulho. Caminhe pra lá com esse agouro”. Os resmungos se misturavam com a narração truncada que o rádio despejava. Ele já nem ouvia os reclamos de anos a fio da esposa, assim como ouvir aos jogos pelo rádio, ouvi-la reclamar também fazia parte daquele ritual. Sentou-se na porta de casa e estirou as pernas para fora da calçada.
Catuense e Botafogo de Serrinha jogavam pelo Campeonato Baiano, ele ouvia desinteressado enquanto não começava o jogo do Dragão contra o Vitória pelo Campeonato do Nordeste. “Vicetória!”, repetiu para si com desdém e cuspiu no asfalto. O jogo ia ser em Carmópolis, mas a esposa reclamou tanto, que ele desistiu de ir. “Arenguêra!”. A ele não parecia absurdo enfiar-se num ônibus lotado por uma hora ou duas, gastar o dinheiro que mal tinham, chegar de volta em casa de madrugada, para assistir a um jogo do Confiança. Vestido no sagrado manto azul, arrependia-se de não ter ido.
O jogo em Serrinha seguia desinteressante, o Catuca passeava no campo do adversário que ia mal das 22 pernas, jogo mais sem graça que o arroz de água e sal que Deta fez hoje no almoço. Respirou fundo lembrando mal-lembrado das primeiras partidas a que assistiu nos estádios. Sim, chamava de estádio ainda que fossem campos de várzea cercados com muro baixo e cujas melhores arquibancadas ficavam a sombra de uma árvore ou eram os próprios galhos da árvore.
Lembrava de um em especial para o qual o pai costumava levá-lo ainda criança, talvez com oito ou nove anos. Lá havia um barranco que fazia as vezes de geral, era o melhor lugar para assistir ao jogo, porque era quase dentro do campo. Houve até uma vez em que um torcedor mais exaltado pulou do barranco para bater no goleiro que levou um frango. Lembrava aos pedaços. Não sabia mais em que cidade era aquilo, nem que times jogavam, embora fosse capaz de descrever ainda o sabor e o cheiro da pipoca que comia depois do jogo.
Mudou a estação do rádio e começou a chiar o jogo do Confiança. “Vamo lá Dragão”, gritou empolgado. O time ia mal no campeonato nordestino, nenhum ponto e já se ia pela terceira ou quarta rodada, mas ele não cansava de acreditar. Envergava o manto azul e ia a todos os jogos no estádio, sempre em companhia do rádio de pilha. “Isto é um manto e não uma mortalha, bora ganhar esse jogo, bando de caba safado”, reclamava com o rádio, porque não perdia as manias de estádio mesmo na calçada de casa.
Alguém passou pela rua e o cumprimentou. Ele respondeu à saudação empolgado, “Hoje vai dar Dragão, você vai ver!” Satisfeito de torcer pro melhor time do mundo. Que importava se o Confiança não tivesse nunca conseguido avançar para além da série C do Campeonato Brasileiro? A paixão encegueira um vivente, e Tonho estava encegueirado desde criança. “Campeonato nordestino é que é futebol de verdade, aqui aqueles menino criado a pêra com leite do Barcelona não vive”. Era mais que um consolo, era uma fé.
No rádio, a voz metalizada narrava um jogo digno do Nordestão, em que, se brincar, até o juiz leva um carrinho. O Dragão, cuspindo fogo, foi pra cima do Vitória, mas os jogadores distribuíam passes errados como se fossem balas em festa de Cosme e Damião. O time não conseguia finalizar as jogadas e os baianos aproveitavam para contra-atacar. Tonho sofria, o coração saindo pela boca. “Bandipestes!”. Para sua felicidade, entretanto, o time adversário tropeçava no campo esburacado do River Plate de Carmópolis. “Isso que dá mandar campo fora de casa! Não tem torcida, não tem jogo!”. Era Tonho inconformado de não estar no estádio em dia de jogo do Dragão.
Quase quebrou o rádio no primeiro gol do Vitória e quase morreu do coração no primeiro gol do Confiança. “Agora vai, sáporra!”. Mas não foi. Pra lugar nenhum. Os dois times batiam cabeça e não acertavam o gol. Tonho sofria mais tão longe de Carmópolis. Jogo mesmo é no estádio, torcida inteira gritando e se movimentando nas arquibancadas como se fosse um só corpo em convulsões – de alegria ou de dor. Finzinho do primeiro tempo, o narrador grita desesperado que Raulino saía desacordado de campo depois de levar uma bela duma cotovelada de Alan Pinheiro. “Bandido sem-vergonha!”. Aproveitou pra xingar o juiz por não ter expulsado o atacante baiano. “É cartão vermelho, seu juiz!”. Morria num final de primeiro tempo empatado.
Mudou de estação e foi ver como andava o Catuense e Botafogo. Um narrador aborrecido anunciava que, em Serrinha, o jogo estava interrompido por falta de luz no campo. “Botafogo perdendo mandou apagar as luz”, ria-se. Ele mesmo, moleque ainda, já tinha apagado luz em estádio no interior a mando de dono de time. Orgulhava-se. E também já tinha tirado muito cachorro de campo pro jogo poder continuar. Era gandula de cachorro quando menino. Era torcedor de beira de campo.
Na volta do segundo tempo, Raulino estava lá, firme e forte dentro de campo novamente. “Só os fortes ficam no Dragão!” Orgulho imenso de já ter sofrido muito ao lado daquele time. Quase infartou mil vezes em 2008 quando o Confiança quase chegou à segunda divisão do Campeonato Brasileiro. O time estava irreconhecível, ganhando todos os jogos, estádios lotados, até torcedores de outros times do interior iam deixar mais azuis as arquibancadas do Batistão. Num desses jogos, viu o próprio governador, sentado ao seu lado, xingando o juiz que tinha deixado de marcar uma falta pro Confiança. “No estádio, não tem patente maior, todo mundo sofre igual.”
Mas 2008 acabou com o time proletário enfiando os pés pelas mãos e permanecendo na série C. No jogo em Carmópolis, as coisas também iam muito mal, com o Vitória já em 2 a 1, e o Confiança que não acertava o caminho do gol. Depois do terceiro, Tonho explodiu de raiva, xingou até a quinta geração da família do juiz que, visivelmente, favorecia o time baiano. “Não é possível, esse juiz tem o olho na bunda pra não ver que isso foi falta!!!” Desesperava-se mais por não estar no estádio, no campo, empurrando o time com as próprias mãos.
Antes do final do jogo, Leandro Kivel ainda teve tempo de derrubar com gosto um jogador adversário e ser expulso. “Esse vai tirar grama dos dentes por uma semana!”, ria-se, vingado. Fim de jogo, Tonho desligou o rádio e ficou sentado, remoendo a raiva e o remorso de ter ficado em casa. Deta apareceu na porta: “cabou esse jogo enjoado, Tonho?”. Ele fez que sim com a cabeça, amuado. “Por que você não assiste jogo na TV que nem os outro, Tonho?”, Deta, abusada daquela barulheira. “E eu lá sou os outro, mulher? E aquilo lá é futebol por um acaso?”, Tonho, na certeza de que só os fortes de coração aguentam torcer prum time de verdade.