Garantias contra Prisão Civil por Dívida

Na Antigüidade, era comum a escravidão por dívida, ou seja, a entrega do próprio corpo e de sua liberdade individual aos domínios do credor como meio de pagamento de débito pecuniário.

 

Uma das conquistas civilizatórias da modernidade foi exatamente a regra geral da proibição de prisão civil por dívida pecuniária, admitida a prisão apenas como meio de punição pelo cometimento de crimes (ilícitos penais) ou como meio de prevenção da pretensão penal punitiva ou executória.

 

Foi exatamente nessa direção que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como garantia fundamental a regra da proibição da prisão civil por dívida, com apenas duas exceções:

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;

 

Pois bem, no ano passado o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário n° 349.703-RS, cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 05 de junho deste ano de 2009, no qual ficaram assentadas importantes premissas sobre o (não)cabimento da prisão civil do depositário infiel em alienação fiduciária e sobre a prevalência dos tratados internacionais de direitos humanos sobre o direito interno infraconstitucional brasileiro.

 

Com efeito, a prisão civil do depositário infiel é prevista em nosso ordenamento jurídico infraconstitucional (Art. 1287 do Código Civil de 1916, Decreto-Lei n° 911/69 e Art. 652 do Novo Código Civil). Ocorre que, desde 1992, o Estado Brasileiro é signatário do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), tratados internacionais que não preveem essa exceção à garantia geral da vedação de prisão civil por dívida, admitindo apenas a prisão civil como instrumento de coerção com vistas ao cumprimento do dever de pagamento de prestação alimentícia:

 

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

Art. 11° Ninguém pode ser aprisionado pela única razão de que não está em situação de executar uma obrigação contratual.

 

 

Pacto de San José da Costa Rica

Art. 7° Direito à Liberdade Pessoal

(…)

7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Esse princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.

 

Ao decidir que os tratados internacionais de direitos humanos regularmente incorporados ao direito interno brasileiro possuem eficácia “supralegal” – ou seja, posição hierárquica superior à lei, embora inferior à Constituição[1] – o STF afirmou a supremacia hierárquico-normativa dessa espécie de tratados internacionais sobre as próprias leis nacionais. Daí que, havendo confronto entre as previsões do Pacto de San José da Costa Rica e os dispositivos de leis ordinárias, prevalecem as primeiras, motivo pelo qual o entendimento foi o de que, nesse quadro, não há espaço para admissão, no Brasil, da prisão civil por dívida.

 

O caso da prisão civil do depositário infiel em alienação fiduciária ainda apresentou algumas nuances. Nesse mesmo julgamento, o STF entendeu totalmente indevida a equiparação do devedor-fiduciante ao depositário, por frontal ofensa ao princípio da proporcionalidade, tendo em vista que: a) “o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito”; b) “o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão “depositário infiel” insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional”.

 

Um único julgamento e tantas novidades na jurisprudência constitucional, a bem traduzir os novos tempos de abertura hermenêutica para a centralidade dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico, reconhecida a integração do Estado Brasileiro ao processo de internacionalização das proteções e garantias dos direitos humanos.

 

 

Jornalismo, só com diploma?

 

Após dois adiamentos, em decorrência de priorização de outros processos importantes que constavam da pauta, tudo indica que na sessão de hoje à tarde o STF deva efetuar o julgamento do Recurso Extraordinário n° 511961, no qual se discute se é compatível com a Constituição de 1988 a exigência de diploma de curso superior de jornalismo, oficial ou reconhecido, registrado no Ministério da Educação ou em instituição credenciada, como condição para o exercício da profissão de jornalista (Art. 4°, V do Decreto-Lei n° 972, de 17/10/1969).



[1] E com isso o STF superou antiga jurisprudência que equiparava os tratados internacionais – mesmo que versantes sobre direitos humanos – às leis ordinárias. Todavia, em aberto permanece a controvérsia sobre se os tratados internacionais de direitos humanos incorporam-se ao direito interno brasileiro com eficácia de norma constitucional originária (Flávia Piovesan e Cançado Trindade, na doutrina, sustentam essa posição) ou se equivalem, no máximo, a emendas à constituição, submetidas, como estas, aos limtes da Constituição originária.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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