A esperança de uma abolição que nunca chega

 

Maxwell Azevedo Viana Moraes

Mestre em Ciências da Religião – Universidade Federal de Sergipe

 

Marc Ferrez. Escravos na colheita de café, 1882.

 

Segundo a literatura, a vinda forçada de escravizados da África para o Brasil ocorreu desde a primeira metade do século XVI; nesse período, também houve a autorização para as atividades da Inquisição em solo português. Durante esse processo, os indivíduos que praticavam atos de infração às leis divinas do catolicismo eram afastados do corpo social, sob a pena de degredo para o Brasil. Na concepção dos inquisidores, dentro de uma vasta seara de açoitadores da moral católica, estavam indivíduos que geravam uma preocupação no ordenamento social, político e religioso da coroa portuguesa, como, por exemplo, pessoas envolvidas com práticas não cristãs, entre outros. Estes eram considerados como uma afronta às leis vigentes, pois manipulavam forças sobrenaturais julgadas como leis de oposição ao sistema de fé e crença católica e eram vistos como feiticeiros que realizavam práticas consideradas demoníacas. Os africanos bantos, que foram escravizados brutalmente, trouxeram consigo práticas de culto aos seres da terra, ligando-os aos praticantes das tradições autóctones brasileiras, estabelecendo uma prática ancestral de culto aos antepassados. Observamos então a formação de uma religião afro luso brasileira, denominada Calundu, que dará origem ao Catimbó e à Pajelança, representando, assim, a primeira fase do processo embrionário de constituição das religiões que serão vistas como sincréticas afro-brasileiras no século XVII.

Séculos depois, após o reconhecimento da independência do Brasil por nações como Portugal e Inglaterra, várias leis propuseram o fim do tráfico de escravos. As práticas ritualísticas dos africanos e seus descendentes passaram a ser foco de repressão, haja visto que o caminho seria o progresso da nação; e, com o advento da República, as manifestações do paradigma do moderno ganharam ênfase, internalizando novos hábitos, costumes e abrindo possibilidades para a absorção de novos ideais, tendo como base o positivismo e as teorias raciais, as quais coadunaram com a demonização das religiões de presença africana no Brasil. Ações planejadas e afirmadas por uma concepção cristã europeia, e também jurídica, promoveram repressão aos cultos religiosos afro-brasileiros, abrindo caminhos para perseguições aos locais sagrados e aos seus cultos. Assim, percebemos que o racismo sempre esteve presente no dia a dia dos negros, mostrando sua face de variadas formas; entre elas, no racismo religioso, numa via de mão dupla de ataques internos e externos às religiões de presença africana.

Dessa forma, nessa encruzilhada, cabe destacarmos que tais percepções foram elementos construídos a partir de propósitos muito bem definidos, sempre contando com o apoio de mecanismos de disseminação de tais ideais. Passando pela criação da Guarda Nacional, em 1831, enquanto um dispositivo regulador da vida cotidiana, embasado pelos ditames estipulados pela elite branca, eurocêntrica e cristã nacional, contando com o apoio do poder judiciário, à figura de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e sua classificação dos povos africanos em superiores e inferiores, chegamos à formação dos terreiros de religiões de presença africana no estado de Sergipe, que desenvolveram fortes atividades desde a segunda metade do século XIX e logo passaram a ser alvos de represálias e perseguições. Nesse sentido, os terreiros e suas práticas se tornaram alvo da imprensa local nas primeiras décadas do século XX, principalmente a partir de 1930, com as crônicas jornalísticas de Zózimo Lima, presentes no jornal “Correio de Aracaju”, considerando tais manifestações religiosas como “exóticas”, “pitorescas” e “coisas de gente ignorante”.

Percebemos o quanto a mídia tinha e continua tendo grande importância na disseminação dos valores das religiões de presença africana. Citamos o exemplo dos feitos do Babalorixá José D’Obakossô, que, em território sergipano, utilizou diversos meios de comunicação para realizar uma espécie de desmitificação das práticas religiosas de terreiro, com participação em programas de rádio e de televisão, deixando seu legado inestimável e contribuindo, assim, para o reconhecimento e propagação do Candomblé pelo país, pois também contribuiu significativamente no Rio de Janeiro, mais especificamente na cidade de Duque de Caxias em idos da década de 1950, onde estabeleceu elos importantes com a imprensa, no caso, a revista “O Cruzeiro”, divulgando as ações e festas que ocorriam em seu terreiro, bem como na defesa aos cultos das religiões de presença afro, denunciando ataques aos terreiros, inclusive o seu.

Assim, decênios se passaram e, com o desenvolvimento da tecnologia, houve uma maior possibilidade de acesso às informações de mídias fidedignas; porém, também continuam circulando aquelas que enfatizam as visões deturpadas das religiões de presença africana, como o recente caso da influenciadora digital que afirmou de forma racista, em um vídeo em sua rede social, que a atual tragédia climática do Rio Grande do Sul é resultado da ação divina, devido à grande existência de terreiros de religiões de presença africana no estado. Ou seja, infelizmente, em contextos como o supracitado, é passível de observação o racismo religioso aplicado, onde não é a beleza, a riqueza cultural e a benevolência praticadas pelas religiões afro-brasileiras que são noticiadas, e sim, é a constatação da incapacidade cognitiva e de respeito para com as diferenças religiosas dentro de um país que se diz laico.

Tais constatações são traduzidas nos ataques aos terreiros e incansáveis tentativas de destruir não apenas um espaço físico onde pessoas estão, mas sim, toda uma ancestralidade que as concebem enquanto indivíduos, capazes de discernir aquilo que é óbvio. As filosofias de presença africana, em sua base, pregam o engrandecimento do caráter humano, o pensamento de coletividade, o amor à natureza e ao próximo, sem distinção. Em sua perspectiva originária, os mais velhos cuidam dos mais novos, e esses aprendem com aqueles que os seus deuses respeitam os deuses dos outros, visto que o deus que habita em você também habita no outro, e que os nossos olhos não são capazes de enxergar nossa própria cabeça, pois, sendo seres interdependentes, devemos cuidar uns dos outros.

 

A discussão presente no texto faz parte da dissertação de Mestrado em Ciências da Religião “Análise de conteúdo do mercado de ensino sacerdotal de Umbanda, na perspectiva Yorùbá por meio do “Tridente de Èṣù” (2002-2022)” – UFS – 2023.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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