A mentira vestida de verdade e nosso amor pelo falso

Pedro Carvalho Oliveira

Professor de História Moderna e Contemporânea do Colegiado de História da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) 

Coordenador do Grupo de Estudos História do Tempo Presente, Política e Movimentos Sociais (Gehpmov)

 

Imagem gerada por Inteligência Artificial.

 

Se um dia o leitor visitar o museu Anne-de-Beaujeu, em Moulins, região central da França, certamente vai se deparar com “A verdade saindo do poço armada de seu chicote para castigar a humanidade”, pintura do artista Jean-León Gérôme, datada de 1896. O título da obra de arte não poderia ser mais literal: o óleo sobre tela mostra uma mulher nua, personificando a verdade, saindo de um poço empunhando um açoite; sua expressão facial denota horror, decepção e fúria, enquanto olha estarrecida para nós. Tão interessante quanto a pintura é a alegoria que a acompanha. 

A verdade e a mentira caminham juntas em um dia ensolarado. A mentira diz à verdade que está um dia quente, sugerindo entrarem num poço para um banho refrescante. A verdade concorda. Então, tira suas roupas e mergulha no poço primeiro. A mentira, então, rouba as roupas, as veste e foge. A verdade, ao sair nua do poço e perceber que foi enganada, recebe das pessoas ao redor reprovação por estar desnuda. Apavorados, os transeuntes viram o rosto. A mentira, vestida como verdade, recebe a confiança dos que preferem crer numa farsa do que olhar a verdade nua, cheia de ira e dor, pronta para machucar os seres humanos que agora creem absolutamente na mentira. 

A pintura de Gérôme nos faz pensar em nosso tempo. Um tempo no qual nos vemos tentando compreender como, diante de tanta informação disponível, as pessoas têm acreditado tão facilmente em notícias falsas como se fossem verdades absolutas. Nos parece que a mentira consegue vestes de verdade mais realistas na internet. O dilúvio de informações veio sem que tivéssemos qualquer tipo de educação adequada para o uso da internet e de suas complexas ferramentas. Culpá-las é dar-lhes um poder que não existe sem a nossa anuência. Os meios digitais são como são porque correspondem aos nossos interesses e desejos. 

Desejos. Aquilo que os meios virtuais parecem capazes de saciar com maestria, como se fossem gênios da lâmpada. Estamos insatisfeitos com a nossa aparência? Lá estarão numerosos filtros que nos deixam mais harmonizados facialmente, sem rugas ou mais magros. E mergulhamos tão profundamente em um território no qual a virtualidade nos possibilita tanta coisa (coisas impossíveis sem ela), que somos cativados a celebrar a imagem que está ali como se fosse a do nosso “eu” ideal. E se fora das redes não somos como aquela versão que ganha likes e seguidores, como aceitaremos isto? Intervenções faciais estéticas, como se estivéssemos buscando filtros fora da virtualidade.

Num outro território do mundo virtual, estão os inconformados com a realidade política fora daquele mundo, sobretudo em uma época na qual ser ativamente político tem sido uma exigência cada vez maior. Nossa imersão no meio virtual, onde o poder da comunicação é tão banalizado que cada um de nós se sente o mais importante comunicador do mundo, nos permitiu confundir criação de conteúdo com fabricação de mentiras a favor de nossa ideologia. Se no meio virtual podemos criar e recriar nossa imagem, sob o consenso coletivo de que aquela imagem é a única versão verdadeira ou válida de nós, algo semelhante ocorre no âmbito discursivo. Afinal, se deixamos de crer na realidade de uma fake news, por mais mentirosa e absurda que seja, deixamos de crer no potencial da internet de saciar nossos desejos, sobretudo aqueles que não podemos saciar fora dela.

Ao que parece, voltamos à caverna de Platão. Nos contentamos com sombras nas paredes, que são apenas parte da realidade ou imagens distorcidas dela, ao invés de encararmos um mundo real complexo e cada vez mais instável, onde nossos desejos nem sempre podem ser saciados. Os meios virtuais nos permitiram combater a frustração que a verdade pode causar. Neste cenário, abraçar a mentira vestida de verdade parece ser a norma, contanto que ela obedeça a nossos interesses e nos leve cada vez mais longe da verdade que, com seu chicote, nos aguarda na virada da esquina. Ela é inevitável. E, como diz o velho ditado, a verdade dói. 

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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