Jairton Peterson Rodrigues dos Santos
Professor do Instituto Federal de Sergipe – Campus Aracaju
Mestre em Ensino de História – UFS
Wilton Santos de Jesus
Professor de História, poeta e quilombola

Estância é um município brasileiro localizado no estado de Sergipe, a aproximadamente 68 quilômetros da capital, Aracaju. Situada no litoral sul, a cidade é conhecida por seus sobrados azulejados, hoje em estado de conservação precário, pelas festas juninas, pelos estandartes coloridos e pelo inconfundível barco de fogo, símbolo da criatividade estanciana. É também o terceiro maior centro econômico do estado, destacando-se pelo polo industrial e por seu comércio que movimenta a região sul sergipana.
Mas para além dos fogos e dos festejos, há uma chama que nunca se apaga: a da comunidade quilombola que resiste e reinventa a vida às margens do Rio Piauí, o Quilombo Porto da Areia, um território de luta, fé e ancestralidade.
O Porto da Areia foi reconhecido oficialmente como comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares (Portaria nº 122, de 9 de julho de 2012) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que em 2023 retificou sua capacidade territorial para 375 famílias quilombolas. O reconhecimento, iniciado em 2011, é fruto da mobilização comunitária e do apoio do Movimento Quilombola de Sergipe. Mais do que uma conquista legal, trata-se de um ato de afirmação existencial e política, o direito de ser, existir e resistir como povo negro, dono de sua memória e de seu território.
É nesse chão, banhado pelas águas do rio e pela força da maré, que se manifesta um fenômeno cotidiano e profundamente simbólico: o “milagre dos peixes”. Quando os pescadores, quase sempre homens e mulheres de origem humilde, avistam o peixe capadinho boiando, ecoa pela comunidade o grito: “Capadinho boiou!”. E a ladeira da Rupiada se movimenta. Crianças, adultos e idosos descem animados para as margens, levando baldes, cabaças e sorrisos.
O peixe, por não poder ser vendido, é partilhado. E, junto com ele, circulam gestos de solidariedade, aguardente, comida e afeto. É um momento de comunhão e reciprocidade. O milagre dos peixes aqui se repete não pela intervenção divina, mas pela graça da partilha, quando o pouco se transforma em muito porque é dividido. Esse gesto ancestral reflete o espírito do quilombismo, conceito formulado por Abdias Nascimento, que o definia como um projeto político e filosófico afro-brasileiro, fundamentado na solidariedade, na coletividade e na reconstrução da dignidade negra.
Beatriz Nascimento, intelectual sergipana e uma das mais importantes vozes do pensamento quilombola, via o quilombo como espaço-tempo de liberdade, um “corpo-memória” em movimento. Para ela, o quilombo não era apenas um refúgio, mas um projeto civilizatório alternativo à lógica colonial, um espaço de pertencimento e resistência, onde a vida negra é afirmada em sua plenitude.
Essa visão encontra eco na filosofia de Antonio Bispo dos Santos (Nego Bispo), que entende o quilombo como expressão da circularidade, um modo de viver baseado na partilha, na convivência e na troca. Para Nego Bispo, a circularidade é uma “tecnologia social ancestral” que confronta a lógica da acumulação e reafirma a vida como roda, como encontro e movimento contínuo.
Assim, o grito “Capadinho boiou!” é muito mais do que um anúncio de pesca. É o sinal da vida coletiva, o chamado da partilha, a liturgia do povo em comunhão. É o milagre produzido pela fé na comunidade e pela força ancestral da solidariedade.
O peixe que boia nas águas do Rio Piauí é também metáfora da resistência, símbolo do alimento que vem do povo e para o povo, sustentando a vida em um país onde o racismo estrutural ainda impõe a fome e a exclusão a muitos corpos negros e quilombolas.
O milagre, afinal, não vem do céu. Ele emerge das águas do quilombo.