Marcella Albaine Farias da Costa (UFRR)
“Entra na roda e ginga, ginga”. Esse é um chamado das/dos ancestrais de África-Brasil. Como nos convida a cantora Iza, vamos entrar na roda e gingar, fazer a roda girar para que algumas questões antes silenciadas pela historiografia, inclusive a historiografia escolar, possam ganhar destaque. Refiro-me, por exemplo, ao protagonismo feminino na capoeira brasileira. Quantas mestras você conhece?
Afetada pela experiência de participação no Programa “Tetas e Tretas” na Rádio/TV da Universidade Federal de Roraima (UFRR) no dia 19 de setembro de 2023, resolvi transformar algumas anotações de pesquisa em ponto de pauta para leitores ávidos em discutir brevemente questões de gênero, relações étnico-raciais e tudo o mais que falar de capoeira proporciona, como musicalidade, espiritualidade, etc.
Forma criativa de resistência, aprendi que a capoeira pode ser vista também como extensão da família, assim entendida para além dos laços consanguíneos. Família é visão de um todo, de um coletivo, em que vozes femininas, ainda que a História não as tenha registrado com os detalhes que merecem, preponderam com firmeza e sensibilidade.
Lembro-me de Ana Maria Gonçalves em “Um defeito de cor” quando diz que “todos estavam alegres, menos a minha avó, que parecia ter esquecido de como é que sorri”. Como sorrir e gingar em um Brasil que insiste em oprimir? Quantas avós ficaram e ainda ficam nas favelas brasileiras sem contato com os seus, em um cotidiano perverso de banalização da vida humana? Brasil: o último a abolir a escravidão nas Américas. Sintomático, não? As permanências são muitas, mas insistiremos que essa roda social precisa girar.
A antropóloga Larissa Guimarães nos lembra que a Roda de Capoeira e o Ofício do Mestre de Capoeira foram acautelados como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2008, marcando, assim, um novo momento na política institucional. Reconheceu-se não somente o bem cultural por seus elementos constitutivos, mas, segundo ela, com especial atenção à presença de pessoas, chamadas de detentores. E detentoras, acrescento.
Capoeira é uma prática cultural de longa data. Já foi proibida, já foi tida como crime, já foi e ainda é vista negativamente por muitos sob o rótulo de ‘marginalidade’. É nas brechas e nas frestas que o estigma pode se ressignificar e mostrar sua força. Mas qual a relação de tudo isso com as aulas de História na educação básica e superior?
Atuando e morando em Roraima, tenho me aproximado bem gradativamente das ‘rodas’. Participo, quando posso, do projeto de extensão na UFRR liderado pelo professor Marcio Akira Couceiro, a quem agradeço pelos saberes transmitidos e pelos desafios que nos coloca para aprendermos uma nova linguagem corporal e espiritual e me provoca a voltar diferente para o meu ofício de formadora de professoras/es de História no curso de Licenciatura da mesma instituição.
Vejo que temos muita luta pela frente. Ela começa pela mudança de mentalidade sobre a nossa própria relação com o corpo, com o ser mulher, com os instrumentos, com o significado de um círculo em que idades distintas se misturam para equilibrar uma “força de opostos”. Concordo com o ponto de vista de que não existe ‘a Capoeira’ ou uma forma padrão de gingar, mas sim de que ela pode ser experienciada de maneiras as mais diversas, aflorando emoções e sensações também as mais diferentes, seja como jogo, dança, esporte ou como atividade que proporciona o brincar.
Roraima, esse lugar potente de fronteira no extremo norte, talvez seja um nicho privilegiado de “virada de chave” nesse debate. Todos os pontos aqui tocados são conteúdos de uma aula de História e, nesse sentido, o Ensino de História, como campo de pesquisa, cumpre papel importante.
Em 2003, fomos interpelados pela Lei 10.639, que trouxe a obrigatoriedade se de trabalhar nas escolas com a História e a Cultura Africana e Afro-Brasileira; em 2008, a Lei 11.645 inclui a pauta indígena; por que não trazer a atuação de mulheres negras sendo protagonistas de sua própria história para as salas de aula da educação básica e mesmo para a formação de professoras/es?
A capoeira pode ser uma abordagem possível, seja como conteúdo direto, seja como filosofia de vida no sentido de pensar outras narrativas para além das que já são comumente veiculadas em livros didáticos. As letras das músicas que são cantadas nas rodas também nos abrem caminhos potentes ao ensino. A força da mulher negra, a resistência, a ancestralidade pulsante são alguns dos elementos que destaco. Alterar currículos para além do peso da lei é processo que demanda criatividade. Vamos exercitar?
Que o samba de Roberta Sá nos inspire a novos gingados: “a roda é a forma ancestral, é a marca que fica no chão. O samba [e a capoeira] é a nata, é o topo da evolução”.
Para saber mais:
COUCEIRO, Márcio Akira et al. Capoeira em Roraima: vou contar a minha história. Boa Vista: IPHAN, 2018.