“O Despertar da Redentora” (1942) e mito da princesa “salvadora”

Adriana Mendonça Cunha

Doutora em História (Fiocruz)

Membro do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq)

Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/870883646662828982/

 

Criado em 1936 pelo Ministério da Educação e Saúde Pública, o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) tinha por objetivo promover o uso do cinema como ferramenta pedagógica por meio da produção de curtas-metragens educativos que seriam projetados nas escolas de todo o país. Sob o comando do médico e antropólogo Edgard Roquette-Pinto, o instituto contou com a colaboração do cineasta Humberto Mauro, responsável por mais de 300 filmes produzidos pelo INCE. As produções tinham duração entre cinco e sete minutos, num formato pensando para ser exibido durante as aulas, auxiliando os professores no ensino de matérias como história e ciências. Produções como “Serpentes do Brasil” (1941) e “Victoria Regia” (1937) apresentavam elementos da fauna e da flora brasileira. Outros, como “Estudos das Grandes Endemias” (1939) e “Febre Amarela” (1938), orientavam sobre as doenças que assolavam o país, destacando os sintomas e causas de tais enfermidades.

No que se refere ao campo da história, o INCE produziu diversos filmes destinados a glorificar os “heróis” e os símbolos da nação, destacando-se nessas películas um caráter ufanista e dentro dos moldes nacionalistas estabelecidos pelo Estado Novo (1937-1945), ditadura instaurada por Getúlio Vargas em 1937. Entre eles estão “Os Bandeirantes” (1940), “O Dia da Bandeira” (1939), “Caxias” (1942) e “O Despertar da Redentora” (1942), este último em homenagem à princesa Isabel. Dirigido por Humberto Mauro, “O Despertar da Redentora” retrata um encontro entre Isabel, então com 16 anos, e uma jovem escrava que fugia dos castigos infligidos pelos seus senhores. Este teria sido, segundo a versão do filme, o estopim que levou a herdeira do trono brasileiro a aderir à causa abolicionista. A produção se destaca pela duração de quase 19 minutos e pela abordagem heroica da princesa Isabel.

Filmado no Museu Imperial de Petrópolis, o filme apresenta uma jovem princesa idealista e bondosa que fica chocada com o tratamento desumano dispensado aos escravizados. Diante de tanta crueldade, ela toma uma decisão: um dia “salvará” todos os escravizados, restituindo-lhes a liberdade. A produção se encerra com o cumprimento da promessa da princesa que assina a Lei Aurea, finalizando com cenas de alegria dos escravizados que, após um ato de generosidade de Isabel, estavam finalmente livres. Carregando as marcas de sua época, “O Despertar da Redentora” apresenta uma visão da história baseada nos grandes feitos dos “heróis” da nação, comum naquele período e reforçada pela política nacionalista do regime liderado por Getúlio Vargas.

Levando em consideração o papel do INCE, podemos supor que a película tenha circulado e sido exibida em diversas aulas de história por todo o país, reforçando a imagem de “redentora” da princesa Isabel, considerada única responsável pelo fim da escravidão no Brasil. Seria, é claro, anacrônico de nossa parte exigir uma visão diferente daquela apresentada no filme, tendo em vista o período no qual foi produzido. No entanto, ele nos permite importantes reflexões para o tempo presente.

Em 2022, o então presidente Jair Bolsonaro criou a Ordem do Mérito Princesa Isabel para homenagear pessoas e instituições que prestam serviços e promovem os direitos humanos, com o claro objetivo de legitimar uma visão da história conduzida pela mão das elites brancas do nosso país. Posteriormente, em 2023, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva revogou tal medida, criando em seu lugar o prêmio Luiz Gama, em homenagem ao advogado negro, filho de uma escrava liberta e que lutou, ao longo de sua trajetória, pela libertação de centenas de escravizados.

Embora a historiografia tenha avançado nas últimas décadas, revelando o protagonismo negro na luta contra a escravidão, ainda persiste em parte da nossa sociedade, a imagem da princesa Isabel como “redentora” dos escravizados. Basta dizer que, em várias escolas do país, ainda se prestam homenagens à princesa Isabel no dia 13 de maio, sem problematizar sua atuação ou mesmo uma discussão mais ampla sobre o movimento abolicionista e a luta de negros libertos e escravizados. Personagens como Luiz Gama, André Rebouças, Quintino de Lacerda, Maria Firmina dos Reis e tantos outros ainda permanecem pouco explorados se comparados com a figura de Isabel, amplamente conhecida pelos alunos de todas as idades.

Por tudo isso, podemos afirmar que a luta por uma história plural, capaz de dar voz aqueles que durante muito tempo foram silenciados precisa, mais do que nunca, continuar. Sem retirar “O Despertar da Redentora” as marcas do seu tempo, este filme nos permite refletir sobre a história que ensinamos e o país que queremos construir.

 

Para saber mais:

O DESPERTAR DA REDENTORA. Direção: Humberto Mauro. Produção: Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Rio de Janeiro, 1942.

LIMA, Kevin. Revogação da medalha Princesa Isabel foi um grande serviço à memória dela, diz ministro dos Direitos Humanos. Portal G1. 12 de abril de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/04/12/revogacao-da-medalha-princesa-isabel-foi-um-grande-servico-a-memoria-dela-diz-ministro-dos-direitos-humanos.ghtml.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais