Ailton Silva dos Santos
Aluno do Mestrado Acadêmico (PROHIS/UFS)
Pós-Graduado em Didática e Metodologia de Ensino (FSLF)
Graduado em História (FJAV)
No livro 1984, obra de George Orwell publicada em 1949, um homem alienado em sua realidade, uma sociedade sob regime totalitário, tem por responsabilidade falsificar documentos e matérias antigas de jornais para assim reescrever a história conforme a vontade do Partido. E, para manter toda essa arquitetura de realidade paradoxalmente condicionada, foi desenvolvido o duplipensar ou pensamento duplo, que é “o ato de aceitar simultaneamente duas crenças mutuamente contraditórias como corretas” cujo objetivo é a busca pelo direito de exprimir mentiras, pois a verdade de ontem, ou da semana passada, não cabe mais na narrativa de hoje, ou da semana que vem, e deve ser condicionada à vontade de um líder que tenciona ter o controle da opinião manifestada pelos indivíduos e meios de comunicação, seja por censura direta ou vigilância velada. Defende-se, assim, duas opiniões que se cancelam mutualmente, transvertendo a narrativa à vontade do momento, indiferente de fontes ou provas. Portanto, esquecer, quando for condizente, e trazer a memória, prontamente, no momento preciso.
O mundo, nesta ficção cientifica, está dividido em três blocos. Sendo eles a Eurasia, a Eastasia e a Oceania, onde se passa o enredo. Contudo, não temos evidência de que, sequer, as outras localidades existam. Entretanto, estão em uma guerra perene, onde a manipulação e vigilância governamental é constante. O Partido esclarece, em suas fake news (me permito o uso anacrônico da palavra), que luta pelo fim dos tiranos que querem escravizar o povo. Em uma comparação rápida, seria algo como emparelhar os órgãos do Estado para que ninguém possa emparelhar tais organizações. Ou fomentar a criação de uma milícia armada, ideologicamente alienada, enquanto se brada que “somente os ditadores temem o povo armado”. Entrementes, embora não seja difícil estabelecer mais comparações, a reflexão aqui proposta parte da ideia de ambiguidade no pensamento, manifestado em discursos e ações, pois é comum as falas do chefe do executivo brasileiro apresentarem ambiguidades. Ou, ainda mais comum, observá-lo defender um pensamento ou ideia e, logo em seguida, defender uma posição diametralmente contrária às ações que tomou. Por muito tempo, se acreditou que fosse confusão, falta de capacidade ou traquejo político. No entanto, com denúncias manifestadas ao longo dos anos, podemos considerar que talvez não seja algo de natureza tão caricatural, inculta e lorpa.
Será que esse aspecto do pensamento duplo, ou algo similar a isso, se infiltrou em, pelo menos, parte da população? Em resposta, podemos contar com o auxílio de Orwell, pois ele buscou compreender as raízes da sociedade controladora, e a ascensão de grupos extremistas, em suas mais diversas faces. Foi comunista, se desiludiu e combateu o comunismo real, totalitário. Em suas viagens, visitou países e serviu como soldado, também atuou na polícia. Trabalhou como jornalista, mas é mundialmente conhecido como escritor; e, a partir dessas experiências, produziu seus livros. Em 1984, deixa especificado os níveis de controle existentes; sendo primeiro o “físico”, incorporado pelas leis e forças repressoras do estado. O segundo é o “social”, em que amigos, parentes e até os próprios filhos denunciavam os “ideocriminosos”, pessoas que fomentavam e/ou possuíam ideias tidas como subversivas, contrárias à ideologia do Partido. E, por último, o controle “mental”, em que o próprio individuo é carcereiro e algoz de si. Este sendo característico do duplipensar, cuja opressão é tamanha que, frente a fontes consolidadas e fatos existentes, o indivíduo se vê entre uma guerra de narrativas manipuladas, ou construídas para tal, em que o próprio raciocínio se divide, levando-o a abandonar o exercício da razão, pois ambos os discursos são igualados. Cria-se uma polaridade, em que ambos estão errados. O pensamento duplo, dicotômico, iguala a fantasia e a realidade. Põe no mesmo patamar o conhecimento cientificamente consolidado e o achismo e a ignorância, decretando que: minha opinião vale tanto quanto seu conhecimento.
Ora, tal conceito desenvolvido e expressado em uma ficção cientifica representa e ajuda a esclarecer como a democracia pode assumir contornos de uma distopia sociopolítica, cujos meandros são observados também no Brasil, onde se passa a clamar o direito de afirmar que “Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro”. Tensionando diluir fatos históricos, e outras constatações cientificamente consolidadas, ao status de opinião como qualquer outra manifestação não embasada e, ao ter a mentira confrontada, declara sofrer perseguição de “ditadores”, por não permitirem que instaure a própria ditadura através de ambiguidades que acabam por ser autorizadas por parte da população que se prontifica a “induzir conscientemente a inconsciência”.