Sobre amores impossíveis: Nikita e a “descida da cortina de ferro”

Mônica Porto Apenburg Trindade

Doutora em História Comparada pela UFRJ

Docente da Faculdade Pio Décimo

Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq)

E-mail: apenburg@getempo.org

 

Imagem retirada do clipe oficial da canção “Nikita”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Tg-Q-Acv4qs. Acesso em: 25 jan. de 2024.

 

Era 05 de março de 1946 quando o ex-primeiro-ministro britânico Winston Leonard Spencer Churchill (1874-1965) proferiu seu discurso no Westminster College, no estado do Missouri-EUA, utilizando a expressão “cortina de ferro”. Embora tal expressão tenha sido empregada em contextos anteriores, foi através de Churchill que a frase ficou popularizada e reverberou na sociedade de maneira significativa durante o longo período da Guerra Fria (1947-1991). Mas, o que o político britânico entendia por “cortina de ferro”? Para Churchill, o termo dizia respeito à consolidação do bloco de influência soviética no contexto da política internacional após 1945, que caracterizaria a Guerra Fria como uma fase marcada pelo antagonismo entre a URSS e os EUA, tendo na Europa, o continente que sofreria esse processo de forma mais acentuada ao ser separado no que dizia respeito às zonas de influência socialista (Europa Oriental) e capitalista (Europa Ocidental).

Diante dessa configuração, Churchill, na condição de líder da oposição à época, utilizou a expressão “cortina de ferro”, como forma de demonstrar aos ingleses e aos norte-americanos a necessidade da criação de uma aliança militar permanente entre ambos os países, além da urgência do controle sobre a tecnologia nuclear e uma forte oposição contra o crescimento e consolidação do poder e da “doutrina” comunista. Na visão de Churchill, tal acordo se constituiria como imprescindível para deter as intenções do expansionismo soviético sobre os países do leste europeu ou impedir a “descida da cortina de ferro” nessa região, conforme as palavras do próprio político em seu discurso.

Anos mais tarde, o antagonismo entre os EUA e a URSS começou a ganhar contornos cada vez mais evidentes durante a Guerra Fria, mesmo perpassando por períodos de arrefecimento das disputas. Seja como for, a busca pela hegemonia armamentista e nuclear, a corrida espacial, os distintos tipos de apoios de ordem militar e econômico aos diferentes países que compunham cada bloco ou a maneira como cada bloco concebia a cultura, o comportamento e as relações sociais, indicavam os diferentes tipos de influência que marcariam significativamente a sociedade. Nessa perspectiva, a expressão “cortina de ferro” utilizada por Churchill em 1946, embora tenha sido permeada por interesses políticos específicos naquele momento, acabou por contribuir também, em determinada medida, para a construção da percepção que a sociedade começou a ter em relação a si mesma: de uma sociedade dividida.

A noção de uma sociedade separada durante a Guerra Fria ou, poderíamos dizer sob a ótica de Churchill, cortinada, pode ser notada, por exemplo, através de algumas produções artísticas à época, seja através de filmes, principalmente norte-americanos, ou por intermédio de canções. No caso das canções, artistas reconhecidos pela crítica e público, como o cantor estadunidense Bob Dylan ou a banda inglesa The Beatles e os cantores também britânicos, Sting, David Bowie e Elton John, para citar apenas alguns, refletiram nas letras de suas canções, produzidas em diferentes épocas do conflito, os desdobramentos gerados por esse sentimento de divisão.

Foquemos na canção Nikita, do cantor Elton John, single do álbum Ice on Fire (Gelo em Chamas), lançado em 1985. Trata-se de uma balada romântica que aborda um amor impossível de ser experenciado justamente por conta da separação na qual a sociedade se encontrava. A construção do Muro de Berlim, em 1961, resultou como um dos desdobramentos da “cortina de ferro” e, enquanto uma barreira física que dividia a Alemanha em Ocidental e Oriental, acabou se tornando um dos símbolos mais marcantes da Guerra Fria e do próprio antagonismo da sociedade. É nesse cenário cortinado que a canção se desenrola. Elton John, ocidental-capitalista, diz “olhar Nikita pelo muro” imaginando como seria se a personagem pudesse abandonar o “frio e a dureza” do mundo oriental-socialista para, enfim, “/encontrar uma alma mais quente para conhecer/” do outro lado do muro.

A composição de Nikita é, na verdade, uma crítica à URSS e a tentativa de sobrepor o modo de vida ocidental encabeçado pelos EUA perante o modo de vida soviético. Os versos da canção demonstram todas as vantagens e liberdades gozadas por aqueles que estavam no ocidente, em contraposição ao cotidiano soviético (permeado por armas e pelo cerceamento da liberdade), de acordo com a canção. Para John, “/Nikita nunca saberia qualquer coisa sobre a casa dele/” e nem ele “/saberia como era bom abraçá-la (o)/”. Nesse sentido, a “descida da cortina de ferro” havia provocado não somente uma separação política e ideológica, mas também uma divisão relacionada aos afetos entre as pessoas. Amar em tempos de guerra se configurou como algo impossível ou inviável a depender de qual “lado da cortina” o casal estivesse.

Assim, apesar de ter sido lançada décadas após o discurso de Winston Churchill, Nikita, dentre outras canções produzidas ao longo da Guerra Fria com o mesmo tipo de temática, ajudou a demonstrar não somente como a sociedade, sobretudo europeia e norte-americana, refletiu sua própria realidade perante a guerra, mas também como esse discurso em torno da “descida da cortina de ferro” contribuiu para a criação de barreiras afetivas entre os sujeitos, cujo simples desejo de ter um coração aquecido pelo amor, ao se depararem com a “cortina de ferro”, só puderam vislumbrar “olhos que pareciam gelo em chamas/ o coração humano, um cativo na neve/”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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