Andrey Augusto Ribeiro dos Santos
Doutorando pelo Programa de pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ)
Integrante do Grupo de Pesquisa sobre Política Internacional (GPPI/UFRJ)
Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS)
No início de 2021, foi possível observar uma agitação nas redes sociais graças ao lançamento dos primeiros trailers de Godzilla vs Kong, terceiro filme de uma série de produções que retrata lutas entre monstros gigantes recheadas de cenas de destruição massiva, e que vêm fazendo um considerável sucesso desde 2014. Apesar dessa nova leva de filmes ser de origem estadunidense, o personagem Godzilla surgiu originalmente no Japão, mais especificamente no filme Gojira (1954), que se tornou um clássico e pode trazer algumas discussões interessantes sobre o contexto histórico no qual foi produzido.
Nessa época, o Japão enfrentava uma série de dificuldades e transformações após a derrota na Segunda Guerra Mundial, selada pelo lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki; episódio responsável pela morte de cerca de 200 mil pessoas. O conflito terminou, mas as armas nucleares continuaram no horizonte dos japoneses, já que o país esteve sob ocupação dos Estados Unidos do início da Guerra Fria até o início da década de 1950, servindo durante esse tempo como base aérea durante a Guerra da Coréia (1950-1953). Isso manteve o medo japonês de mais uma vez ser alvo de bombas atômicas, já que EUA e União Soviética, superpotências do período, estiveram envolvidos no conflito que ocorria a alguns quilômetros da costa japonesa, e possuíam tais armamentos.
Foi no período subsequente a esses acontecimentos que Gojira foi lançado, tendo como principais nomes o diretor Ishiro Honda (1911-1993) e Eiji Tsuburaya (1901-1970), responsável pelos efeitos especiais. Estreando aproximadamente dez anos após o lançamento das bombas em Hiroshima e Nagasaki, o filme traz um Japão que tem que lidar com os ataques de um ser pré-histórico gigante e radioativo, graças ao contato com armas nucleares, que passa a atacar a costa japonesa. O bombardeio atômico empreendido pelos EUA ao fim da Segunda Guerra e suas consequências, assim como um tom crítico ao uso desse tipo de armamento, permeiam o filme, estando presentes em diversos pontos do roteiro.
O próprio ponto de partida da história traz uma referência a Hiroshima e Nagasaki. Apesar de não ser dito explicitamente, parece subentendido que o impacto responsável por acordar Godzilla foi o causado nesse episódio. Outras passagens trazem referências à lembrança da guerra para os japoneses; como numa sequência no metrô, em que um dos passageiros lamenta o retorno aos abrigos de guerra graças aos ataques de Godzilla e numa das cenas iniciais, inspirada em incidentes envolvendo testes nucleares estadunidenses no Pacífico, que mostra o flash, que antecede o ataque do monstro a um navio pesqueiro, cegar sua tripulação, lembrando o clarão que antecede as explosões atômicas. No mais, a sequência do ataque da criatura gigante a Tóquio e a destruição de nível nuclear retratada, com a cidade em chamas e o desespero da população, teve muita força junto a um público que vivenciou um dos episódios mais trágicos da Segunda Guerra Mundial.
A mensagem antinuclear do filme fica principalmente por conta do Dr. Serizawa (Akihiko Hirata), um cientista que desenvolve um dispositivo capaz de destruir oxigênio. No entanto, ele busca se isolar da comunidade científica, crente de que a sua descoberta seria utilizada como arma caso fosse divulgada. Apesar dos ataques de Godzilla, ele busca manter tal equipamento em segredo; porém, cede diante da destruição e sofrimento causados pelo monstro, permitindo que sua invenção seja usada para deter a criatura. Apesar disto, o personagem morre intencionalmente no processo, levando consigo os segredos da sua criação para evitar que ela fosse utilizada novamente.
A mensagem de Serizawa, reafirmada nas cenas finais do filme, deixa claro seu tom antinuclear, ao afirmar que os humanos devem tomar cuidado ao manusear forças além do seu alcance, e que, caso os testes atômicos continuassem, episódios como os retratados iriam se repetir. Um fato que pode reforçar essa consideração é o de que os EUA produziram uma versão do filme, lançada em 1956, sob o título Godzilla: King of Monsters, cujo roteiro omitiu todas as críticas às armas nucleares, além de inserir personagens estadunidenses na história. Tal omissão pode ser explicada pelo revés que a mensagem do filme poderia causar ao consenso doméstico nos EUA em relação à necessidade do desenvolvimento de armamentos atômicos, muito importantes em sua disputa pela hegemonia com a União Soviética.
Gojira teve um enorme impacto cultural, se tornando uma das franquias mais extensas da história. E, apesar de poder ser tido “apenas” como um filme sci-fi de catástrofe, também é um reflexo do período pós-guerra japonês. Suas inúmeras sequências acabaram deixando de lado o tom crítico em relação às armas atômicas. Entretanto, essa pauta retornou na versão de 2014, sob um discurso mais voltado para a preservação do meio ambiente. Aqui deve ser levado em conta o fato dessa produção ter sido lançada poucos anos depois do acidente nuclear de Fukushima, ocorrido há quase exatos dez anos e apontado como o maior desastre deste tipo desde Chernobyl.
Com isso, o clássico longa japonês é um interessante objeto para observar algumas das questões presentes no contexto pós-Segunda Guerra Mundial e do início da Guerra Fria, principalmente relacionados ao desenvolvimento de armas nucleares e à destruição massiva que elas poderiam trazer. Hoje, apesar de tal sentimento parecer distante, a energia atômica ainda continua no centro de alguns desentendimentos no plano internacional, como os que puderam ser vistos ultimamente envolvendo EUA, Irã e Coréia do Norte. Considerando isso, Gojira oferece um olhar para o passado que pode auxiliar no entendimento de questões no presente.