Greve de Policiais Militares?

No Ceará, policiais militares estão “aquartelados”, ou seja, estão ocupando os quartéis e não estão realizando as suas atribuições, que, compreendendo o policiamento ostensivo e preventivo, exigem que estejam nas ruas e logradouros públicos, com vistas a inibir e coibir eventuais práticas criminosas e garantir a ordem pública.

Até aí, nada que infelizmente já não tenha ocorrido em outros momentos em outros Estados Brasileiros, a exemplo da Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro.

A ausência anunciada de policiamento ostensivo, com o consequente incremento da criminalidade e da violência contra as pessoas e seus bens (já foi constatado o aumento exponencial dos casos de homicídio, por exemplo), bem caracteriza, sem qualquer leniência, grave, gravíssimo comprometimento da ordem pública, que bem poderia ensejar a decretação formal de intervenção federal, nos termos excepcionais do Art. 34, inciso III da Constituição (“A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: […] – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”).

Convém registrar que é exatamente para preservação da ordem pública, incolumidade das pessoas e do patrimônio que a segurança pública deve ser exercida, exatamente como determina o Art. 144 da Constituição, que inaugura o capítulo da segurança pública que se encontra no Título V, reservado à “Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”.

Às polícias militares estaduais cabe exatamente a polícia ostensiva (preventiva) e a preservação da ordem pública [é urgente, cada vez mais, a discussão sobre a desmilitarização das polícias; a manutenção da estrutura militarizada das polícias estaduais é resquício autoritário da ditadura]. O Governo do Estado do Ceará demonstra incapacidade diante das reivindicações dos policiais militares e inabilidade em negociar a pauta de reivindicações. Mais ainda: mostra-se incapaz de transmitir à sociedade a confiança de que conseguirá exercer a contento o seu dever constitucional de contornar a grave crise, inclusive para responsabilização diante dos abusos que sejam constatados nas práticas dos militares estaduais.

A saída constitucional é, então, a decretação da intervenção federal no Estado do Ceará, com afastamento temporário do Governador do cargo, nomeação de um interventor pelo Presidente da República, que passará a coordenar as ações da União, à frente – temporariamente – da gestão do Estado, com medidas previamente delineadas a ser executadas com objetivo de contornar a crise e restabelecer a ordem pública, gravemente ameaçada. O decreto de intervenção precisará ser aprovado pelo Congresso Nacional, com urgência, por isso que deve ser a ele encaminhado no prazo de 24 horas. Que o interventor consiga pactuar minimamente uma agenda de negociações, adotar providências para que os excessos sejam coibidos nos termos de devidos processos legais regularmente instaurados (sim, houve e têm havido excessos, abusos, ilegalidades, crimes até, mas que sejam apuradas as responsabilidades individualizadas por tais excessos), ao passo em que emergencialmente requisite auxílio de forças federais para o policiamento ostensivo. Tudo nos termos constitucionalmente prescritos no Art. 34, III, Art. 36, § 1º e Art. 84, X da Constituição.

Como se percebe, a intervenção federal a ser formalmente decretada e executada, nos termos da Constituição, é o meio jurídico adequado para que sejam tomadas algumas medidas que já estão sendo tomadas, na prática, sem que a intervenção seja formalizada (na prática, o Ceará já está sob uma intervenção federal de fato, na medida em que a crise de sua segurança pública está sendo gerenciada por forças nacionais da segurança pública e com auxílio das Forças Armadas; só que essa intervenção de fato não se submete a qualquer forma de controle).

A esse filme o Brasil já assistiu outras vezes. A decretação da intervenção é evitada, em casos como esse, não em nome do respeito à autonomia dos estados, mas por um tão inconfessado quanto inescondível motivo: evitar a impossibilidade temporária de aprovação de emendas à constituição. De acordo com o § 1º do Art. 60, A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio” (grifou-se). Como a todo o momento as correntes majoritárias querem aprovar emendas à constituição, a intervenção federal não é decretada para não impossibilitá-las, mesmo quando estão plenamente configuradas hipóteses excepcionais que não apenas autorizam mas também impõem a sua decretação.

De momento, existem já em tramitação três propostas de emenda à constituição priorizadas pelo Presidente da República e pelo Congresso Nacional, e mais ainda a anunciada PEC da Reforma Administrativa, que seriam impossibilitadas de aprovação em caso de decretação da intervenção formal no Estado do Ceará.

O nosso comentário, porém, não é sobre o caminho constitucional para a solução desse grave comprometimento da ordem pública no Ceará, mas sim a discussão sobre essa postura de policiais militares estaduais que é recorrentemente reproduzida e que, no limite de reivindicações – por mais legítimas que sejam – não atendidas pelos respectivos governos estaduais, partem para a tática dramática do aquartelamento, que não significa outra coisa senão greve!

Com efeito, greve é “suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação de serviços” (Art. 2º da Lei nº 7.783/1989, que “Dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências”).

Ocorre que a Constituição não poderia ser mais explícita ao estabelecer que “ao militar são proibidas a sindicalização e a greve” (Art. 142, § 3º, inciso IV e Art. 42, § 1º), o que vale tanto para os militares enquanto integrantes das Forças Armadas quanto para os militares dos Estados e do Distrito Federal.

Como a prestação de serviços dos militares estaduais é exatamente o policiamento ostensivo e preventivo, com vistas à preservação da ordem pública (Art. 144, § 5º) – o que exige que estejam nas ruas e logradouros públicos, para inibir e coibir eventuais práticas criminosas – o “aquartelamento” não é outra coisa senão a suspensão coletiva da prestação desses serviços, ou seja, greve, proibida pela Constituição.

É fácil perceber a essência dessa vedação constitucional: categorias de servidores públicos que, para a prestação de suas atividades, são armados –  para atuar em defesa da sociedade e do Estado – não podem se valer exatamente desse alto poder da força para, pela força, submeter o Estado e a sociedade à sua vontade. A greve, para essas categorias – armadas – de servidores públicos, funcionaria não como instrumento de luta em negociação paritária, mas sim como instrumento de chantagem e coerção.

Não à toa, o Supremo Tribunal Federal possui precedentes diversos no sentido de que essa vedação constitucional ao exercício da greve se estende a outras categorias armadas de servidores públicos, a exemplo de policiais civis.

Pois bem, é exatamente o que está a ocorrer no Ceará nesse momento. A greve dos policiais militares está gerando grave comprometimento da ordem pública não apenas pela ausência anunciada do policiamento ostensivo, mas também e sobretudo porque parte dos militares estaduais tem atuado para boicotar a atuação dos outros policiais militares que não aderiram ao movimento, bem ainda impondo toque de recolher a realizando ostensivas manifestações públicas com armas e máscaras [conjunto de condutas a caracterizar o crime de motim, previsto no Código Penal Militar: “Motim – Art. 149. Reunirem-se militares ou assemelhados: I – agindo contra a ordem recebida de superior, ou negando-se a cumpri-la; II – recusando obediência a superior, quando estejam agindo sem ordem ou praticando violência; III – assentindo em recusa conjunta de obediência, ou em resistência ou violência, em comum, contra superior; IV – ocupando quartel, fortaleza, arsenal, fábrica ou estabelecimento militar, ou dependência de qualquer deles, hangar, aeródromo ou aeronave, navio ou viatura militar, ou utilizando-se de qualquer daqueles locais ou meios de transporte, para ação militar, ou prática de violência, em desobediência a ordem superior ou em detrimento da ordem ou da disciplina militar: Pena – reclusão, de quatro a oito anos, com aumento de um terço para os cabeças.   Revolta – Parágrafo único. Se os agentes estavam armados: Pena – reclusão, de oito a vinte anos, com aumento de um terço para os cabeças.”].

Esse quadro é especialmente perigoso quando se tem percepção de que esse tipo de motim tem sido apoiado e incentivado por lideranças político-partidárias muito próximas e aliadas do Governo Federal e que flertam constantemente com a ideia de militarização da política.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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