Guitarra baiana instrumento brasileiro

(A dupla de amigos, músicos e inventores, Dodô & Osmar).

A história da Guitarra Baiana confunde-se com uma dupla tão conhecida quanto suas criações: Dodô & Osmar. E já que é de instrumentos de cordas e história que vamos falar, voltemos um pouco no tempo, nos idos dos anos 40, pra entendermos como um pau elétrico revolucionou de maneira explosiva a cabeça dos músicos, e criou de forma livre e involuntária uma escola musical, uma festa e uma tradição, espontaneamente como só no Brasil haveria de ser.

O ano era 1942, o cenário psico-social do mundo como um todo, era de medo e pânico vindo de todas as partes, pois estava instaurada uma guerra mundial, fora a forte crise financeira que boa parte dos países passava, aqui no Brasil não era diferente, mas na Bahia de todos os santos haviam dois jovens descompromissados e com uma paixão em comum: A música. E após uma esperada apresentação do violonista Benedito Chaves e o seu “Violão Elétrico” na cidade de Salvador, esses dois jovens músicos amadores entram em catarse com o que viram e ouviram, eram eles, Adolfo Nascimento, o Dodô e Osmar Macêdo. O instrumento consistia em um violão acústico comum, munido de um captador magnético, adquirido no exterior.

(Os Paus Elétricos originais de 1942).

Dodô, que era antes de tudo um eletrotécnico de mão cheia, conseguiu reproduzir facilmente o aparato, amplificando, assim, o seu som e do seu parceiro nas festas de clubes, nos quais, tocavam chorinhos, boleros, frevos, músicas clássicas e toda uma leva de influências, desde a banda da Carmem Miranda a Ritmos de sua época. Mas um grande problema ainda os perseguia, o apito agudo e alto, como descrevia Osmar, toda vez que se aumentava o volume de seus amplificadores e a festa se tornava

(A família Macêdo e a Fobica, o primeiro Trio Elétrico do mundo).

limitada, era o fenômeno da microfonia. Graças a ela, os músicos com alma de inventores não se deram por vencidos e tentaram de todas as maneiras eliminarem aquele “apito”. E foi numa bancada de trabalho de madeira maciça com dois pregos entrelaçados por uma corda de Bandolim devidamente afinada, com o captador que Dodô desenvolveu, logo abaixo, que a cidade pôde ouvir pela primeira vez “um som limpo e estridente que parecia um sino”, como, mais uma vez descreveu Osmar. Estava descoberto o fator do problema, as caixas dos instrumentos acústicos, e pra exterminá-lo de vez, trataram de ir a uma famosa loja de instrumentos musicais em Salvador, pedirem os mais caros Violões e Cavaquinhos, quebrá-los ali mesmo no balcão para surpresa (e medo) do funcionário e saírem apenas com os braços desses instrumentos, como quem sai com um filho da maternidade. De maneira totalmente intuitiva, despretensiosa e sem influência do que se havia fora do país, a dupla cria no mesmo ano a Guitarra Elétrica, ou como o Baiano apelidou ao ouvir o som estrondoso que os instrumentos criavam dessa vez dentro dos clubes: O “Pau Elétrico”. E não passava disso, um cepo maciço de Jacarandá, com os braços, respectivamente, de um Violão e um Cavaquinho.

Até aí, tudo era novidade, mas nada bombástico. Oito anos depois, em 1950 é que a coisa muda de figura, por que Osmar e Dodô, juntamente com um amigo resolvem formar um conjunto, o Trio Elétrico, e colocar, naquele Fevereiro, em cima de uma velha Fobica, como era chamado um antigo modelo da Ford, a explosão sonora que vinha dos seus Paus Elétricos. Foi uma revolução sem precedentes, a ponto de no último dia de

(Armandinho Macêdo, filho do som do Trio Elétrico).

carnaval o motor da Fobiquinha quebrar e ela continuar desfilando da Rua Chile até a Avenida Sete, movida pela força do povo em êxtase, chega a ser simbólico esse momento mágico, pois o carnaval de Salvador até então composto por carros alegóricos, mudos e elitizados é transformado drasticamente para um carnaval

participação (literalmente) em que o povo humilde podia apreciar as músicas que faziam a cabeça da garotada na época, suar e extravasar suas dores ao menos naquele período, e tudo isso de graça.

Após uma longa pausa em suas atividades por motivos pessoais, o trio volta na década de setenta, com o terceiro e mais importante membro, Armandinho Macêdo, o mais virtuoso e reconhecido músico desse instrumento, um verdadeiro estandarte e defensor fiel, além de que, filho e discípulo direto do Osmar Macêdo. Ele chega com toda a bagagem musical de seu pai e do amigo Dodô e traz novas influências, já que como todo jovem da época era fascinado pelos Beatles, Rolling Stones, Jimi Hendrix e Led Zeppelin.

(Guitarra Baiana da empresa Del Vecchio, no fim da década de 70. Esse era o modelo mais usado até a década de 80 e se assemelhava bastante a uma espécie de Cavaquinho elétrico).

Sob essa influência, ele pede a Dodô, que a essa altura além de eletrotécnico e músico, era também o primeiro Luthier dos paus elétricos, que lhe faça um instrumento com o formato exato das Guitarras dos seus ídolos dos Beatles, nasce aí o Cavaquinho elétrico, ou “Cavaquinho de Trio Elétrico”, como era nomeado pelos músicos em geral (Nesses tempos o grupo de Dodô e Osmar já havia perdido o seu nome para os caminhões que levavam as bandas em cima), já que o mesmo, era em essência, um Bandolim elétrico (por sua afinação em quintas, dispostas em EADG e EADGC em sua versão de cinco cordas, igual ao Bandolim) com quatro cordas simples (O Bandolim possui oito cordas afinadas em uníssono), igual a um cavaquinho.

Com a gravação dos primeiros discos do Trio Elétrico Armandinho, Dodô e Osmar ele imprime uma nova sonoridade ao instrumento e ao grupo, trazendo as distorções e a pegada mais voltada ao Rock n´ Roll e a música que acontecia no mundo, sem perder de forma alguma a brasilidade como característica mais marcante do som da banda, que emanava nos álbuns e na avenida o frevo quente e trieletrizado da Bahia, marca registrada do Guitarrista e dos trios da época. A mudança mais importante com certeza foi o

fato de que Armandinho, que estreava sua nova banda, A Cor do Som, estourou sucessos Brasil a fora e sentiu a necessidade de rebatizar o instrumento. E foi uma música do Moraes Moreira que serviu como luva pra batizar aquela que viria a renascer como “Guitarra Baiana”, nome muito mais que adequado praquela que era com certeza uma das primeiras Guitarras Elétricas do mundo, e de fato, a primeira no Brasil.

(A descontração da família Macêdo posando pra fotos com suas Guitarrinhas, em meados de 77).

Avançando um pouco, já na década de 80, mais precisamente em 83, além de já ter determinado seu som e ter rebatizado o instrumento, Armandinho adiciona uma quinta corda à Guitarra Baiana, sob influência do Violino de Jean Luc Ponty. Foi uma encomenda ao Luthier carioca, Vitório Quintilho, e sem sombra de dúvidas o primeiro divisor de águas real pelo qual a Guitarrinha (como é comumente chamada por seus músicos e aficionados) passou, pois suas possibilidades sonoras aumentaram drasticamente e ela se distanciou de uma vez por todas do Cavaquinho e do seu primo direto, o Bandolim. Virou uma mescla desses dois últimos com a Guitarra tradicional, o Guitarrão (como é conhecido, também, pelos músicos e apaixonados pela Guitarra Baiana, que tem como primeira referência de Guitarra o som da mesma), ainda assim, adquirindo autonomia e autenticidade perante os três.

Capa do Disco Chame Gente, do Trio Elétrico, com a primeira guitarrinha de cinco cordas).                     
(Armandinho em 1988 mandando um som em sua Guitarra Baiana)

Armandinho, com o Trio Elétrico e A Cor do Som, fez a Guitarra Baiana, dividir palco com os maiores músicos do país e do planeta, viajou aos quatro cantos do globo, visitou o renomado festival de Jazz em Montreux, virou febre e ganhou as prateleiras do Nordeste inteiro.

(Capa do disco “A Cor do Som ao vivo em Montreux” de 1978).                 
(Álbum da banda A Cor do Som mostrando seu auge e Armandinho empunhando sua Guitarra Baiana Del Vecchio, em 1979).

O grande revés na história da Guitarrinha foi a falta de interesse das indústrias em produzir acessórios específicos, o que resultou na completa escassez de peças, fazendo com que quase tudo no instrumento fosse “emprestado” da Guitarra tradicional (de cordas, a ferragens e captadores), tornando assim a Guitarra Baiana um instrumento de difícil tocabilidade, pois era muito difícil achar uma amostra que afinasse corretamente e mantivesse essa afinação constante, problemas com a construção, que acarretavam numa regulagem que quase sempre era insatisfatória, somado ao fato da grande estridência que ela ainda possuía mesmo com todas as alterações até então, por possuir um campo harmônico de tamanho equiparado ao do Cavaquinho e de uma grande parte dos músicos se utilizar de modelos muito pessoais como: Forma de nave, de raio, de folha, e assim vai,  o que imprimia uma certa falta de identidade ao instrumento, além de que foi o período da grande explosão do Axé Music, nos idos de 85 em diante, que era um som mais simples de ser tocado e levado pelo som dos teclados e sintetizadores, tendo a Guitarra tradicional como mero acompanhamento, levando a Guitarrinha, que anos antes era a voz do trio elétrico, a extinção quase que completa. Alguns anos mais tarde, ela se encontrava praticamente esquecida. Ouvia-se falar, mas poucos eram os músicos que ainda carregavam a tarefa, que outrora era obrigatória aos trios, e agora era bastante árdua, de procurar seu espaço com o instrumento fruto de paixão, muitas vezes com um resultado que não era o esperado. O único que mantivera certo aparecimento em grandes eventos e na mídia em geral durante esse período de ostracismo ainda era o Armandinho Macêdo.

(Elifas Santana Luthier, em um momento de carinho com uma de suas obras).

“Eis que no decorrer da década de 90, em meio a avançada popularização que o Axé Music ainda exercia, agora dividida também com o Samba, Pagode e Ritmos americanizados que chegavam por aqui, como o Rap, Hip-Hop, as Boy Bands e a música eletrônica,  tal qual em 42, mais uma vez um jovem descompromissado estava em terras baianas, dessa vez um sergipano nascido em Propriá, auditor de tributos do seu Estado, e que estava em meio a um tratamento de saúde. Seu nome é Elifas Santana, e cresceu igual a vários de sua idade, mais um hipnotizado pelo som do trio de Armandinho, Dodô e Osmar. Nesse período, Elifas, que era também artista plástico autodidata desde muito cedo, em parceria com um amigo guitarrista, Júnior Fartes, confecciona suas primeiras Guitarras, ainda em Salvador, como forma de passar o longo tempo que tinha vago entre um tratamento e outro, acabou como Hobby, mas esses Instrumentos alcançaram, rapidamente, certo prestígio na cidade por conta da qualidade e acabamento que conseguiram atingir sob a marca de “JRE”. O ano era 1996 e aquele fevereiro seria o mais importante até então, tanto para Elifas, quanto para a Guitarra Baiana, pois ambos teriam suas histórias entrelaçadas e alteradas por completo, dali em diante. Naquele ano, o até então iniciante em lutheria recebe um convite de subir ao trio de Dodô e Osmar, por conta das suas já comentadas Guitarras e tem o prazer de conhecer o seu ídolo de perto. Armandinho escuta a promessa de receber uma Guitarra Baiana envenenada com alavanca Floyd Rose, se anima, mas não acredita muito no sucesso da empreitada, pois segundo ele, muitos haviam tentado e não conseguiram e ele precisava de um instrumento com certa urgência.

(Armandinho Macêdo empunhando sua “máquina envenenada”, a primeira Guitarra Baiana do Luthier Elifas Santana, a Star Series modelo Armandinho Macêdo Nº 0001, sua obra prima).

De 1996 a 1997, Elifas Santana que nem sabia ao certo do que se tratava o termo “Luthier”, se vê pressionado por uma matéria de capa da revista Guitar Player (uma das mais importantes publicações no meio dos guitarristas), onde Armandinho comenta empolgado sobre sua nova “máquina envenenada”. Começa ali, de imediato, um longo e lento período de trabalho, pesquisa e motivação, que aliados aos conhecimentos com as artes plásticas, que ele sempre exerceu desde muito novo e do seu verdadeiro fascínio por matemática e física, que culminou em sua primeira Guitarra Baiana, ela que seria a sua obra prima, por assim dizer. Remodelou, aumentou o campo harmônico e volume cúbico de madeiras e implementou captadores de alto ganho, e com êxito, instalou a tão almejada Floyd Rose na Guitarrinha, o instrumento teve sua tocabilidade completamente alterada pra melhor, ficou mais confortável, o som ficou mais grave, houve um importante ganho no Sustain (prolongamento de som da nota) e as impressões sonoras perderam a insistente estridência que era comum nas antigas Guitarras Baianas.
Um ano após a promessa, em 1997, o instrumento estava nas mãos do músico, que mudou drasticamente sua forma de tocar, alcançou novos sons e status para a Guitarra Baiana, que como a Fênix, renasceu dos mortos.

Surgiu ali uma grande amizade e parceria, entre Elifas e toda a família Macêdo, que geraram feiras, exposições e todo um trabalho de marketing, publicidade e construção de uma variedade de modelos, todos autorais, acarretaram numa popularização tão grande quanto os tempos áureos de trio elétrico, ou mais ainda, por que a Guitarra Baiana passou a ser observada e procurada por uma variedade de músicos e artistas de basicamente todo gênero musical, do Heavy Metal ao Punk, do Forró ao Sertanejo, isso somado aos já antigos admiradores que se voltaram mais uma vez a Guitarrinha.
Elifas Santana não parou mais e hoje transformou aquele antigo cepo de madeira, o Pau Elétrico, num instrumento de alto nível de profissionalismo e acabamento, entrou em parceria com grandes marcas como a NIG e a Santo Ângelo, e hoje a Guitarra Baiana possui seu próprio encordoamento, cabos específicos com cortes de agudo, captadores autorais de sua marca, que são desenvolvidos para ter as freqüências exatas, os modelos mais custosos possuem pedais de distorção embutidos.

(Guitarra Baiana Star Series modelo Aroldo Macêdo e o mais novo encordoamento NIG para Guitarra Baiana)

(Guitarra Baiana Star Series modelo Armandinho Macêdo com toda a tecnologia inclusa).

Conseguiu imprimir total nacionalidade, com modelos autorais e bem definidos, a despeito do modelo Aruana, nomeado em homenagem a uma praia sergipana e desenvolvida pra ser a Guitarra Baiana mais popular do mundo, o que se tornou realidade.

(Guitarra Baiana modelo Aruana, a Guitarrinha popular)
Produção de Aruanas prestes a embarcar pros seus novos donos).

Hoje uma gama de músicos possui uma Guitarra Baiana, como exemplo pode-se citar: Kiko Loureiro (banda Angra), Frank Solari, Andreas Kisser (banda Sepultura), Stanley Jordan, pessoas do meio Gospel e uma diversidade sem fim de músicos que jamais haviam aberto os olhos para o instrumento.

(Kiko Loureiro, Guitarrista do Angra, recebendo sua Guitarrinha modelo Estúdio).   

 (Andreas Kisser, guitarrista da banda Sepultura e sua Guitarra Baiana modelo Estúdio, mais a direita, o mesmo com Kiko Loureiro discutindo as particularidades da Guitarrinha).

(Elifas Santana com  Armadinho e Aroldo Macêdo, empunhando suas Guitarrinhas comemorativas de 70 anos no ano de 2012).

A Guitarra Baiana, assim batizada por Armandinho, é um instrumento genuinamente brasileiro, nascida e criada na Bahia e que, em 2015 completa 73 anos de idade. De lá pra cá, muita música se tocou e muita coisa rolou. É um instrumento apaixonante pela sua versatilidade: Frevo, Rock, Axé, Choro, Pagode, Música Clássica, tudo fica bom na guitarrinha. Como diz a família Macêdo: A Guitarra Baiana é o “instrumento bom” e sua história segue bravamente em diante pra quem quiser se aventurar.

Por Fellipe Santana

Seguem abaixo links do Youtube para que você possa conhecer, ver e ouvir, um pouquinho mais desse instrumentinho que só é pequeno no tamanho:

Link com vídeo feito por Elifas Santana com suas réplicas do pau elétrico original (acompanha alguns clássicos da Guitarra Baiana):

O som da Guitarra Baiana nos anos 80
Link com antigo vídeo da música “É a massa”, considerada por muitos a mais difícil do trio elétrico de Armandinho, Dodô & Osmar, e o seu grande desafio:

O som da Guitarra Baiana nos dias atuais
Link com vídeo onde Armandinho executa a música “Something” de George Harrison:

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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