Circulam entre os sergipanos repertórios universais, com mensagens valoradas, que sobrevivem graças ao poder comunicante do folclore. As condições sociais se alteram, mas o legado cultural resiste, como se cada homem, cada mulher, guardasse consigo esse tipo de conhecimento, genuíno, colegiado, expressivo e dinâmico em suas características identificadores, essencial manifestação recorrente, capaz de revolver o passado, na dialética da memória em seus embates com a realidade. Lió não tinha consciência do seu papel mediador, entre o mundo velho e a vida das pessoas e dos grupos sociais, no curso do tempo. Os que ouviram suas récitas antológicas, contudo, podem avaliar sua contribuição, como o faz Bráulio do Nascimento, um dos mais acreditados pesquisadores e intérpretes do folclore brasileiro, em texto tingido pelos tons da saudade, por causa da morte do amigo: “Homero e Lió Na galeria dos narradores que deram relevante contribuição para o conhecimento do nosso conto popular, cabe a Lió (Leocádio Martins dos Santos, falecido aos 93 anos) um lugar especial. Era uma vocação de narrador, com um estilo e uma performance inigualáveis. Lió contando episódios de sua vida parecia sempre estar narrando um conto, na mesma cadência, com detalhes, ilustrando as frases com a fisionomia e a gestualidade expansiva. Seus olhos mergulhavam no fundo da memória em busca das imagens que transformavam a ficção em realidade. Dentre as dezenas de contos recolhidos por Jackson da Silva Lima, Lió no repertório uma verdadeira preciosidade: o Polifemo. Ele está em Homero, no canto IX da Odisséia (século IX a.C.). E tive a alegria de registrar e ouví-lo todas as vezes em que vinha a Aracaju para o Encontro Cultural de Laranjeiras, em visitas com Jacson e Luiz Antonio. Lió recontava o Polifemo com os mesmos detalhes da versão grega, em sua adaptação sergipana. Era como se ele e Homero o tivessem ouvido do mesmo narrador, apenas com milênios de diferença.”
As estórias que o povo guarda na memória, e que oferece ao público de ouvintes atentos, parece ser como a água da fonte, velha como a terra, mas sempre servida como se fosse produzida ali, naquele ponto. E só faz falta quando seca. Na comparação, da água com o homem e este com suas estórias, a falta é sentida quando emudece, morto. Lió, que morreu há poucos dias, em Aracaju, era um manancial inesgotável, jorrando com graça diante dos ouvidos interessados nas suas conversas, repletas de reis e reinos, príncipes valentes, princesas castas, heróis corajosos, e toda uma atmosfera do imaginário humano, conotado por preceitos morais. Assim como se diz que á água que se bebe hoje é a mesma do tempo dos dinossauros, produzidas por um ciclo natural, se pode dizer que os contos repetidos por Lió e por outros narradores descendem dos povos mais velhos da história humana, com suas culturas. Lió e Bráulio Nascimento
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