Impeachment: Crimes de Responsabilidade

Após o julgamento, pelo STF, da medida cautelar na ADPF nº 378 – na qual resolveu diversas controvérsias sobre a compatibilidade da Lei n° 1.079/1950, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e de atos praticados pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, com preceitos fundamentais da Constituição da República e praticamente definiu todo o procedimento do impeachment, em detalhes, a fim de evitar que a cada etapa processual surjam novos questionamento e novas demandas – o procedimento já instaurado na Câmara dos Deputados (a partir de denúncia apresentada pelos cidadãos Hélio Bicudo e Janaina Paschoal, à qual aderiu posteriormente o cidadão Miguel Reale Júnior) ficou paralisado, tendo em vista a interposição, pela Câmara, de “embargos de declaração”, recurso por meio do qual pede que sejam efetuados esclarecimentos e sanadas algumas omissões.

Esse recurso está pautado para julgamento na tarde de hoje (quarta-feira, 16/03/2016). E o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, já informou que, independentemente do julgamento e do seu resultado, dará sequência, amanhã (quinta-feira, 17/03/2016), ao procedimento, refazendo ou concluindo a eleição para composição da comissão especial que terá a incumbência de emitir parecer, dentro do prazo de dez dias, sobre se a denúncia deve ou não ser admitida para efeito de deliberação sobre a autorização para abertura do processo.

Nessa série de artigos sobre o tema do impeachment, convém relembrar, aqui, as necessárias premissas do tema.

Com efeito, é característica essencial do sistema presidencialista de governo – adotado pelo Brasil e expressamente consignado na Constituição da República e mantido por decisão soberana do povo no plebiscito realizado em 1993 – a inexistência de responsabilização exclusivamente política do Presidente da República, da qual possa resultar por esse motivo a perda do cargo. No presidencialismo em geral, e de igual modo no nosso modelo constitucional, o Presidente da República somente pode perder o cargo em caso de condenação pela prática de crime comum (em processo de competência originária do Supremo Tribunal Federal) ou em caso de condenação pela prática de crime de responsabilidade (em processo de competência do Senado Federal), em qualquer hipótese exigida a prévia autorização da Câmara dos Deputados – pelo quorum qualificado de dois terços – para abertura do processo.

A organização constitucional do sistema de governo brasileiro é bem ilustrativa dessa que é apontada por José Afonso da Silva como uma das características essenciais do presidencialismo: “O Presidente da República exerce o Poder Executivo em toda a sua inteireza; acumula as funções de Chefe de Estado, Chefe de Governo e Chefe da Administração Pública; cumpre um mandato por tempo fixo; não depende da confiança do órgão do Poder Legislativo nem para a sua investidura, nem para o exercício do governo” (grifou-se) (2005, p. 505-506).

Noutras palavras: ao contrário do que sucede no parlamentarismo, onde o Chefe de Governo somente se mantém no cargo enquanto conte com o apoio político da maioria parlamentar, no Presidencialismo, por mais que legítimas pressões populares forcem o Congresso Nacional a retirar o apoio político ao Presidente da República, isso não constitui hipótese de perda do cargo.

Vale lembrar o que é exatamente impeachment. Em verdade, estamos laborando no campo da responsabilidade política dos agentes públicos. Sérgio Sérvulo da Cunha bem explica que “quando se fala em responsabilidade política tem-se em vista: a) a responsabilidade correspondente à aplicação de sanções tipicamente políticas (v.g. a reprovação, pelo eleitor, de um candidato); ou b) a responsabilidade – independente das responsabilidades civil, penal e administrativa – correspondente à aplicação de sanções jurídicas aos agentes políticos” (CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Fundamentos de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 394). Acrescenta ainda que "(…) a responsabilidade política inclui: b1) a responsabilidade decorrente da prática de ilícito tipicamente político, não apenas o ilícito eleitoral, mas ainda o ilícito contra instituições políticas, contra a prática política ou contra ativistas políticos enquanto tais, sejam ou não exercentes de funções do governo; b2) a responsabilidade do agente político em razão de ilícitos administrativos" (op. cit., p. 394).
A Constituição Federal de 1988 opera esse tipo de responsabilização política de agentes públicos por meio da tipificação dos chamados “crimes de responsabilidade” que, em boa verdade, possuem natureza de infrações político-administrativas.  A Lei n° 1.079/1950 é que produz a devida regulamentação, tendo-o efetuado em relação à Constituição de 1946 mas recepcionada, na maior parte de seus dispositivos, pela atual Constituição, que, em seu Art. 85, enumera os crimes de responsabilidade do Presidente da República.

Na denúncia em tramitação – apresentada pelos cidadãos Hélio Bicudo e Janaina Paschoal, à qual aderiu posteriormente o cidadão Miguel Reale Júnior – é apontado que a Presidenta da República teria praticado os crimes de responsabilidade descritos nos incisos V, VI e VII do Art. 85 da Constituição, a saber: atentar contra a probidade na administração, atentar contra a lei orçamentária e atentar contra o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

A Lei nº 1.079/1950 define – à guisa de tipificação – o que se deve considerar, para efeito de crime de responsabilidade, atentar contra a probidade na administração, atentar contra a lei orçamentária e atentar contra o cumprimento das leis e das decisões judiciais:

“CAPÍTULO V

DOS CRIMES CONTRA A PROBIDADE NA ADMINISTRAÇÃO

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

1 – omitir ou retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder Executivo;
2 – não prestar ao Congresso Nacional dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas relativas ao exercício anterior;
3 – não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;
4 – expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;
5 – infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais;
6 – Usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim;
7 – proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.

CAPÍTULO VI

DOS CRIMES CONTRA A LEI ORÇAMENTÁRIA

Art. 10. São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária:

1- Não apresentar ao Congresso Nacional a proposta do orçamento da República dentro dos primeiros dois meses de cada sessão legislativa;
2 – Exceder ou transportar, sem autorização legal, as verbas do orçamento;
3 – Realizar o estorno de verbas;
4 – Infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária.
5 – deixar de ordenar a redução do montante da dívida consolidada, nos prazos estabelecidos em lei, quando o montante ultrapassar o valor resultante da aplicação do limite máximo fixado pelo Senado Federal;       (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
6 – ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal; (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
7 – deixar de promover ou de ordenar na forma da lei, o cancelamento, a amortização ou a constituição de reserva para anular os efeitos de operação de crédito realizada com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei;        (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
8 – deixar de promover ou de ordenar a liquidação integral de operação de crédito por antecipação de receita orçamentária, inclusive os respectivos juros e demais encargos, até o encerramento do exercício financeiro; (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
9 – ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de operação de crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que na forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente;      (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
10 – captar recursos a título de antecipação de receita de tributo ou contribuição cujo fato gerador ainda não tenha ocorrido;       (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
11 – ordenar ou autorizar a destinação de recursos provenientes da emissão de títulos para finalidade diversa da prevista na lei que a autorizou;       (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
12 – realizar ou receber transferência voluntária em desacordo com limite ou condição estabelecida em lei.     (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)

(…)

Art. 12. São crimes contra o cumprimento das decisões judiciárias:

1 – impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário;
2 – Recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo;
3 – deixar de atender a requisição de intervenção federal do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral;
4 – Impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária.”.

Manifestações públicas significativas realizadas no último domingo em diversas cidades brasileiras reivindicam o impeachment da Presidenta Dilma Roussef (é verdade que houve também reivindicações genéricas pela moralidade pública e contra a corrupção e contra a impunidade, além de algumas pautas políticas genéricas, ou melhor, de pautas anti-políticas, no sentido de rejeição generalizada à política e aos políticos).

Todavia, para que seja realmente aberto o processo de modo válido e regular, é preciso que existam elementos concretos de prática, pela Presidenta da República Dilma Roussef, das condutas descritas na Constituição e na lei – acima transcritas – como crime de responsabilidade.

Existem esses elementos concretos?

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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