Incerteza ambulante ou ambivalente excentricidade? I

Quem lê o livro de Fernando Gabeira, “Onde está tudo aquilo agora?”, fica sem entender suas escolhas. Parece que o seu viver assumiu uma alucinante precessão, como se um giroscópio o desviasse por eixos indefinidos e nele inexistisse um real esteio para nortear o seu agir.

Quem lê o livro, e espera um refletir consistente ao título, resta perplexo. O que desejava este homem? O que está a querer ainda no seu interior mais íntimo? O que estará ele ardilando em proposta de surpresas? Surpreender apenas? Ser um inusitado enquanto incerteza ambulante em excentricidade ambivalente?

Seria ele um discípulo de Bakunin, o líder anarquista démodé, que ninguém mais fala enquanto ideal a seguir em des-construção de ideias e ações?

Seria um marxiano, ele que diz ter lido Das Kapital, no original, para não enveredar em desvios de versões?

Seria ele um ecologista verdadeiro, cientificamente estruturado, para provar e comprovar, sem opinar por opinante bilioso apenas?

Seria ele um homossexual, ou um oscilante multiusuário do sexo, embalando-se entre o côncavo e o convexo, sem ousar ser plano, claro, retilíneo e consequente com as próprias escolhas?

Seria ele um perigoso sequestrador, mesmo conseguindo bancar torturador delicado, capaz de matar sua vítima inocente, por conhecer o limite estudado da sua ação, e a real intenção, enquanto luta e missão?

Teria sido apenas um terrorista semântico, um romântico sequestrador, um aprendiz anarquista, sem inspiração própria, ou alguém que servia apenas, em eficiência e determinação, sem paixão ou inspiração, como um Eichmann, que não se concluiu carnífice, só porque a rapidez da ocasião não lhe maturou tal semelhança, enquanto artífice?

Teria sido esta sua arte, enquanto gestor do calabouço, limitada a um papel edulcorado, de fascinador carcereiro, deliciando-se em síndrome de Estocolmo (Doentia paixão ou compaixão doida em que o cativo se apaixona pelo seu algoz), contemplando a fragilidade do seu prisioneiro, mesmo sendo o ianque opressor de seu menosprezo, perante a insegurança do cativeiro?
Questionamentos assim externados, porque em sendo um livro de memórias, o autor não justifica as escolhas.

Elas acontecem simplesmente por geração própria. E se não aconteceram desfechos mais graves, estudados e concluídos, é porque tudo foi fugaz, em rapidez e transmutação, incompatível com qualquer ordem azimutal giroscópica. O pião girou, des-girou, cambaleou, fingiu adormecer, acordou sonhando, enveredou no pesadelo, sem mostrar qualquer zelo, coerência e confiabilidade.

E por que assim? E por que não assim?

Apreciemos o seu relato, antes declarando ser fascinante a sua vida, por tantas aventuras e travessuras vividas.

Nasceu, Fernando Gabeira, em 17 de fevereiro de 1941, em Juiz de Fora, Minas Gerais, às margens do Rio Paraibuna, “grande rio de águas negras”, no idioma tupi-guarani.

“Tupy or not tupy”, só para consignar uma importância real da história pátria, porque de Juiz de Fora partiu, na madrugada de 31 de março de 1964, a tropa vitoriosa comandada pelo General Olímpio Mourão Filho, que avançando Rio de Janeiro a dentro, culminou na derrubada do Presidente João Goulart, e, goste-se ou não, com o consequente regime militar que vigorou no país até 1982.

Se Gabeira fosse funcionário público, barnabé serventuário ou servidor do executivo, legislativo ou do judiciário, já estaria no gozo plenipotenciário de sua aposentadoria compulsória; um excelente momento para destilar a própria história.

Não é o seu caso. O serviço público requer constância e assiduidade. Não enseja a aventura como na vida de Gabeira aconteceu, viajando mundo afora, sendo aprendiz e diletante, em toda diretriz e quadrante.

Da infância, Gabeira se lembra de algumas frases que o acompanharam pela vida: “A cobra vai fumar”, alusiva à abrasiva participação da nossa FEB (Força Expedicionária Brasileira) na 2ª Grande Guerra, com a esquadrilha “Senta a pua”. Outra: “A vaca vai para o brejo”; uma presença significativa, quase sempre.

Das recordações de infância, a vida no armazém de secos e molhados onde vivia com a família, o convívio com as putas da cidade, e até uma aprendizagem de zoofilia, com direito a agarros de carrapicho, onde meninos forenses “traçavam” éguas, que por hábito de prazer rotineiro, encostavam-se aos barrancos para tal dispor, deixando-lhes por rescaldo cepas de carrapatos nas partes pudendas.

Carrapatos na genitália à parte, sua formação familiar era também incomodativa por reacionária e udenista, inspirada na solteirice incorruptível do castíssimo Brigadeiro Eduardo Gomes e contra Getúlio Vargas. Dir-se-ia, que talvez Carlos Lacerda o inspirasse.

Arteiro desde menino, Gabeira foi repreendido pelo Delegado, por jogar pedra no telhado de zinco de um vizinho. Coisa de menino agoniado, que prometeu não repetir, mas continuou a persistir.

No curso ginasial, num colégio particular, liderou um movimento que culminou com a queda de um professor de matemática. O movimento foi vitorioso com um abaixo assinado juramentado dos signatários, sendo o professor de matemática substituído pelo de desenho. Um sinal de que ninguém aprendeu; nem desenho, nem matemática.

Depois viriam as lutas contra os aumentos das tarifas dos bondes, das mensalidades escolares e a recusa em assistir aos sermões do colégio protestante em que estudava, culminando com a própria expulsão por indisciplina, por incapacidade “de obedecer ordens e cumprir horários”, e ser contumaz provocador, escrevendo ”frases sem nexo nas composições, como uma espécie de protesto contra os temas” que lhe pareciam formais.

Desejando coloca-lo “nos trilhos”, sua família o interna num colégio de padres com muros altíssimos. Debalde muralha, não impede sua fuga para encontrar-se com Cida, uma mulata dentuça, que vivia ali perto. E assim a necessidade de buscar outro colégio.

Depois virou líder estudantil, projetando e liderando greves contra os “tubarões do ensino”, fechando colégios até com cadeado, e assumindo outras causas, como a de poder assistir filmes impróprios para menores, apoiando-se no texto constitucional, que não continha tal vedação, e serem todos iguais perante a lei.

Assim, de reinvindicação e outras postulações, Gabeira, já um leitor inveterado, e um nascente redator bem inspirado, resolve ser jornalista.

Logo as portas dos jornais se lhe abriram aos bons textos, primeiro com o semanário mineiro, “Binômio”, opositor a todos os governos, federal, estadual e municipal; depois no Rio de Janeiro, Última Hora, Jornal do Brasil.

E como aconteceu com muitos jovens inteligentes daquela época, postos a perder por elogios excessivos e desafios de lutas memoráveis, logo estava editorialista do “Panfleto”, de propriedade de Leonel Brizola.

Depois o governo de Jango cairia como um castelo de cartas, mesmo Gabeira dizendo apedrejar os militares na Cinelândia, e depois sem compreender a marcha da história com ampla aprovação ditada por “gorilas, mal-amadas, Marcha da Família com Deus pela Liberdade, gente brandindo o Rosário”.

E quanto mais o novo regime se fortalecia mais Gabeira entendia que tudo poderia mudar com sua palavra e ação, abraçando as teses mais pueris da esquerda, enquanto guerra sem povo, mas revolucionária e popular.

Era a imersão num terreno movediço e perigoso. De jornalista conceituado, ingressa na clandestinidade, trabalhando e sendo mantido por uma Organização sem nome nem razão social, com a missão de fazer a derrubada do regime, legitimando-se até com a violência para os fins políticos, com assaltos e sequestros.

Acreditava então que: “Um, dois, três, muitos Vietnãs, a profecia de Che Guevara seria cumprida na América Latina”, com ações armadas e multiplicadas pelo país.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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