Incerteza ambulante ou ambivalente excentricidade? II

Sentindo-se a cavalgar os galgos da história, Fernando Gabeira confessa: “A clandestinidade nos envolvia numa aura de mistério e capacidade de entrega; as roupas nos aproximavam da classe operária e nos banhavam com alguns raios da gloriosa luz da classe oprimida, destinada, em nossas teorias, a comandar o curso da história”.

Uma compreensão desfocada, afinal nunca fora real personagem desta classe oprimida. Era um jornalista bem remunerado, e fora até por isso, insensível às lutas sindicais da classe.

Alimentava-se, portanto, da ideia de conseguir comandar e liderar esta classe, que entendeu oprimida, manipulável, despertando-a para a maturidade política que julgava possuir.

Imaturidades à parte, ei-lo agora militante da “O”, uma “Organização” clandestina de composição tão desconhecida quão misteriosa, em comando e composição, destinada a derrubar o regime militar instalado.

Sua missão seria a de editar uma gráfica para a publicação das ideias da “Organização”. Para tanto alugara uma casa retirada, na Rua Barão de Petrópolis, dispondo de um cômodo bem isolado com isopor, destinado a conter o ruído de uma impressora offset.

A gráfica não vingou, e a casa que seria refúgio de uma atividade compreensível, por ideal de romance, virou cenário criminal, ominoso, findando um covil, um calabouço, cenário de cativeiro do embaixador americano, Charles Burke Elbrick, sequestrado pela “O”, em 4 de setembro de 1969.

Agora Gabeira é tão sequestrador quão carcereiro, confidente e testemunha da insegurança, perplexidade e apreensão de seu prisioneiro, o embaixador americano.

Poder-se-á imaginar que a ação de Gabeira não requereu violência, e por isso fosse acessória e inexpressiva.

Não! Sua atuação no sequestro exigia dissimulação e sangue frio, afinal só ele e não outro, por ter alugado a casa, podia fazer o elo entre o cativeiro e o mundo exterior. Só ele podia circular pela vizinhança sem despertar atenção, abastecendo o esconderijo, comprando pizzas, cigarros, bebidas e refrigerantes, e outras comodidades requeridas. Sem falar que podia dialogar livremente em inglês com o cativo.

O cativeiro, como se sabe, teve bom desfecho, sendo libertos alguns presos políticos a título de resgate. Não há aqui, porém, a necessidade de lhes repetir os nomes.

Notável foi o governo militar saber ceder às exigências dos sequestradores sem maior trauma, com o embaixador sendo liberado, não por bondade dos seus algozes, mesmo porque uma incursão armada já era possível e não fora intentada. O esconderijo já estava devidamente vigiado, tanto que, uma vez liberto o embaixador, Gabeira é preso pela repressão do regime.

Como prisioneiro do regime ditatorial, Fernando Gabeira não narra a contento o que sofreu em termos de tortura, mas confessa-se glorioso, envolvido não em maus lençóis, mas nos lençóis trançados no “linho da história”, contendo o “cheiro da vitória contra a ditadura militar e o imperialismo norte-americano; a ‘Babilônia’, no dizer dos “Black Panthers”.

Sandices e tolices à parte, confessa: “a luta armada constituía uma alternativa às derrotas da esquerda, que se alimentava somente de teorias e conversas”.

Se as conversas e teorias foram insubsistentes, a prática da violência restou pior com o agravamento do regime, que se consolidou e endureceu, em prejuízo da democracia e abertura nascentes.

Agora, o pau iria cantar livremente, sobrando até para o pai de Gabeira, um inocente comerciante em Juiz de Fora. Quanto a Gabeira, sendo detido num boteco próximo onde fora “tomar uma água tônica, ultimo sabor de liberdade”, começava ali um novo capítulo: a prisão e o exílio.

Baleado nas costas e jogado num camburão, o momento da prisão lhe fora a maior experiência de proximidade com a morte.

Nos trancos e tombos da viatura, sentia-se inserido no território de memória coletiva, daqueles “que combateram e morreram na luta contra a tirania, o capitalismo, o imperialismo e outros ismos que os solavancos do carro traziam à consciência”.

Sofreu alguma tortura, com uso de choque elétrico, acreditando que não lhe aconteceu em excesso, porque a bala lhe tinha atravessado o estômago, rim e fígado, convalescendo de uma vasta cirurgia, com uma sonda peniana no pós-operatório, a necessitar de maiores cuidados.

Depois, foi transferido para ao prédio da “Oban, Operações Bandeirantes”, em sucessivo peregrinar de cadeias, que não lhe eram surpresas, afinal com elas convivera, enquanto repórter policial.

Quanto aos interrogatórios evitava um sofrimento maior, com respostas estudadas de modo a informar o mínimo e sem delação de companheiros. E porque sabia pouco também.

Depois viria um novo sequestro, desta vez do embaixador alemão, Ehrenfried Von Holleben, e eis Gabeira sendo liberto enviado para a Argélia, quarenta prisioneiros banidos do Brasil, refazendo suas vidas no norte da África.

Se o exílio é um inferno, no entender de Alighieri, o Dante, não aparece bem assim nas confissões de Gabeira. Argel lhe fora agradável e sem privações. Logo iria para Cuba, onde postulava receber treinamento guerrilheiro, ganhar um novo passaporte e passagem de volta para o Brasil.

Havana lhe fora em 1970 “uma eterna manhã de domingo; ruas vazias, de quando em quando ocupadas por velhos carros americanos, imensos, uma lembrança enferrujada dos tempos de comércio capitalista e ônibus superlotados, os ‘guaguas’. Argel e Havana, duas capitais de sonhos rebeldes”.

Duas cidades que não lhe foram de tanto agrado também, afinal logo estaria em Berlim Ocidental, munido de um passaporte português de equatoriano naturalizado.

Se em Havana tinha que caminhar longamente para comprar pão “por la libre”, em Berlim, bancava o “Tio Joaquim”, seu novo apelido, bem nutrido e já se inserindo na onda verde nascente.

Não era mais o guerrilheiro sequestrador, não se agradava tanto com Marx e sua luta de classes. Nunca simpatizara com o Partido Comunista, e sua nomenclatura dirigente a partir de Prestes.

De Fidel Castro não pareceu admirar bastante, terminando quase em rota de colisão, por repelir sua máquina burocrática. Cuba nunca lhe foi de causar saudades; ali não mais retornando, nem por roteiro sentimental. Não se sentira confortável, constatando a opressão esmagadora de talentos, como a do escritor homossexual, Reinaldo Arenas (Autor de “Antes que anoiteça”), e a prisão de 75 intelectuais de oposição.

Mas se ainda não havia se decepcionado de todo com Cuba, ao viajar dali para Berlim já evidenciava uma escolha por um país livre, democrático, respeitador dos direitos coletivos e individuais.

De Berlim foi para Santiago. O Chile vivia a atmosfera revolucionária do governo Allende. Meio mundo para ali se dirigia na esperança da fraternidade igualitária e utópica. Chegou até a escrever sobre isso na revista Ponto Final, do Movimento de Esquerda Revolucionária, o MIR.

É quando acontece o ponto final do governo Salvador Allende, com o ataque ao Palácio La Moneda, desferido por Augusto, o General Pinochet.

Agora tem que fugir de verdadeira repressão adurista por augusta, abrasiva e adusta.

Logo agora quando o Socialismo democrático era uma promessa concreta? Logo agora quando conhecera o sucesso capitalista da Vinícola Concha y Toro, e degustara o Cassillero del Diablo, o diabo o fustigava em vara curta andilhana?

O jeito agora era fugir com a roupa do couro para a argentina, não viajando em jardineira, Andes de volta, em busca de Mendoza, outra terra de bons vinhos.

Agora a fuga se dá entrando esbaforido pela porta da frente da embaixada portenha em Santiago do Chile, onde a comida era escassa e ruim, e era terrível mastigar o pão “quebra-dentes”, de fabricação Tupamara.

Depois tudo melhorou, agora na Suécia, com o socialismo avançado de Olof Palme, mesmo porque era preciso fugir da Argentina, Peron estava de volta e não queria transação de negócio com o esquerdismo latino-americano.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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